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Richard Ochieng' em sua casa em Nairóbi. Episódios envolvendo discriminação de funcionários chineses têm perturbado quenianos | Andrew Renneisen / The New York Times
Richard Ochieng' em sua casa em Nairóbi. Episódios envolvendo discriminação de funcionários chineses têm perturbado quenianos| Foto: Andrew Renneisen / The New York Times

Antes do ano passado, Richard Ochieng', de 26 anos, não se lembra de ter vivido uma situação de racismo.

Pelo menos não enquanto era um órfão em sua aldeia perto do Lago Vitória, onde todos eram, como ele, negros. Não enquanto estava estudando em uma universidade em outra parte do Quênia. Não até começar a procurar emprego e chegar a Ruiru, um assentamento que vem crescendo rapidamente na periferia da capital, Nairóbi, onde Ochieng' encontrou trabalho em uma empresa de motocicletas chinesa que havia acabado de chegar ao país. 

Seu novo chefe, porém, um chinês com a mesma idade dele, passou a chamá-lo de macaco. 

Começou quando os dois estavam em uma viagem de vendas e avistaram um bando de babuínos na beira da estrada, contou Ochieng'. 

"Seus irmãos", exclamou o chefe, pedindo que Ochieng' compartilhasse bananas com os primatas. 

E aconteceu de novo, disse ele, quando seu chefe se referiu a todos os quenianos como primatas. 

Humilhado e indignado, Ochieng' decidiu gravar uma fala do chefe em que ele declarou que os quenianos eram "como um povo macaco". 

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Depois que o vídeo feito pelo celular circulou amplamente em setembro, as autoridades quenianas foram rápidas em deportar o chefe de volta para a China. Em vez de uma resolução ordenada, no entanto, o episódio mostrou que há uma ansiedade crescente no Quênia sobre o assunto e desencadeou um debate mais amplo. 

À medida que o país abraça a presença cada vez maior da China na região, muitos quenianos se perguntam se a nação não recebeu, sem querer, um influxo grande demais de estrangeiros poderosos que estão moldando o futuro do país – ao mesmo tempo em que disseminam atitudes racistas. 

É uma questão dolorosa para o país, e que muitos quenianos, especialmente os mais jovens, não esperavam enfrentar no século 21. 

O Quênia pode ter sido uma colônia britânica, onde a supremacia branca reinou e os negros foram forçados a usar documentos de identificação no pescoço. Mas tornou-se uma nação independente em 1963, com um sentimento de orgulho por estar entre as democracias mais estáveis da região. 

Hoje, muitos quenianos mais jovens dizem que o racismo é um fenômeno que eles conhecem em grande parte indiretamente, através de lições de história e notícias estrangeiras. No entanto, episódios envolvendo o comportamento discriminatório da crescente força de trabalho chinesa na região têm inquietado muitos quenianos, particularmente em um momento em que seu governo busca laços mais estreitos com a China. 

"Eles têm o capital, mas, por mais que seu dinheiro seja bem vindo, não queremos que nos tratem como se não fossemos humanos em nosso próprio país", afirma David Kinyua, de 30 anos, que administra um parque industrial em Ruiru que abriga várias empresas chinesas, incluindo a fábrica de motocicletas onde Ochieng' trabalha. 

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Durante a última década, a China emprestou dinheiro e ergueu infraestrutura em grande escala em toda a África. Para pagar por tais projetos, muitas nações africanas emprestaram dinheiro chinês ou contaram com recursos naturais como reservas de petróleo. E, ao contabilizar o custo, as nações africanas geralmente se concentraram em suas dívidas crescentes e, ocasionalmente, nas práticas de trabalho abusivas de algumas empresas chinesas. 

Aqui em Nairóbi, preocupações sobre racismo e discriminação são uma parte crescente da conversa sobre a presença cada vez maior da China. 

Na capital, trabalhadores de 20 e 30 anos compartilham as histórias de racismo ou discriminação que testemunharam. Um deles descreveu ter visto um gerente chinês bater em uma colega queniana por causa de um pequeno erro. 

Outros funcionários quenianos contam que os banheiros de seus escritórios são separados por raça: um para chineses e outro para quenianos. Ainda outro trabalhador queniano descreveu como um gerente chinês orientou seus funcionários quenianos a desentupir um mictório cheio de pontas de cigarro, apesar do fato de apenas funcionários chineses ousarem fumar lá dentro. 

É difícil dizer quantos chineses moram no Quênia, embora um grupo de pesquisa calcule que são 40 mil. Vários vivem aqui há apenas alguns anos, empregados em uma das centenas de empresas chinesas. Muitos dos funcionários moram juntos em grandes conjuntos habitacionais e são levados de um lado para o outro por causa do trabalho, tendo pouca interação social com os quenianos. 

"Por causa do isolamento e da falta de integração, geralmente eles não são muito conscientes da situação local", diz Hongxiang Huang, ex-jornalista conservacionista chinês que viveu em Nairóbi. "Não sabem muito bem como interagir com o mundo exterior." 

E muitos chegam com visões hierárquicas de cultura e raça que tendem a colocar os africanos na base, explica Howard French, ex-correspondente do New York Times que escreveu o livro "Chinas's Second Continent" ("Segundo Continente da China", em tradução livre), de 2014, que narra a vida dos colonos chineses na África. 

Neocolonialismo

Acusações de discriminação surgiram até mesmo em um grande projeto patrocinado pelo Estado: uma estrada de ferro chinesa de 480 quilômetros construída entre Nairóbi e Mombaça. O trem tornou-se um símbolo nacional do progresso e da cooperação sino-queniana, embora as críticas positivas tenham sido, às vezes, ofuscadas pela preocupação com o valor de US$ 4 bilhões. 

Em julho, o jornal queniano The Standard publicou uma reportagem descrevendo a atmosfera de "neocolonialismo" que cerca os trabalhadores ferroviários quenianos sob a administração chinesa. Alguns foram submetidos a punições degradantes, segundo o relato, enquanto engenheiros quenianos foram impedidos de dirigir o trem, exceto quando jornalistas estão presentes. 

Há sinais de que elementos dentro do governo podem estar fazendo pressão. Em setembro, a polícia queniana invadiu a sede de Nairóbi de um canal de televisão estatal chinês, detendo brevemente vários jornalistas. O momento pareceu muito curioso: a mesma semana em que o presidente Kenyatta estava em Pequim, o que fez com que alguns se perguntassem se alguém dentro do governo queniano vinha querendo criar uma disputa diplomática. 

A experiência de Ochieng' e de outros trabalhadores é um espelho do futuro das relações entre os dois países. Ele aceitou um emprego como vendedor, pensando que garantiria um futuro próspero, mas quando foi trabalhar encontrou uma realidade diferente. O salário era uma fração do que foi inicialmente oferecido, contou, e estava sujeito a dedução por uma longa lista de infrações. 

"Sem risadas", era uma das regras impressas da empresa. Cada minuto de atraso – às vezes inevitável por causa do famoso trânsito de Nairóbi – leva a uma multa acentuada. Se um funcionário se atrasar 15 minutos, pode perder cinco ou seis horas de pagamento, disse ele. 

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Um gerente chinês, Liu Jiaqi, de 26 anos, parecia particularmente expressivo. Às vezes, ele sorria e estava bem-humorado, segundo Ochieng', mas sempre que a questão do pagamento surgia ou algo dava errado, Liu repreendida seus subordinados. 

Quando Ochieng' deixou um folheto de vendas no carro durante uma visita e teve que se desculpar antes de ir buscá-lo, ele conta que Liu começou a gritar: "Este africano é muito tolo". 

Mas os mais dolorosos, afirmou ele, foram os insultos chamando-o de macaco – o tipo de desumanização usado para justificar a escravidão e a colonização. 

Ochieng' contou que protestou várias vezes, mas os comentários a respeito dos macacos não pararam. 

"Foi demais", afirmou. "Então decidi: 'Deixe-me registrar isso'." 

O discurso que Ochieng' gravou aconteceu depois que uma viagem de vendas deu errado. Ochieng' perguntou ao chefe por que ele estava descontando sua raiva nele. 

"Porque você é queniano", explicou Liu, dizendo que todos os quenianos, até mesmo o presidente, são "como um macaco". 

Ochieng' explicou que os quenianos podem ter sido oprimidos antes, mas que são pessoas livres desde 1963. 

"Como um macaco", respondeu Liu. "O macaco também é livre." 

No dia seguinte, o vídeo começou a circular amplamente, e Liu, que não pôde ser encontrado para comentar sobre o assunto, foi deportado. Essa se tornou uma amostra especialmente gritante do confronto entre as duas culturas, com muitos acrescentando que o episódio esfriou de maneira perceptível as relações entre os quenianos e o povo chinês na capital. 

"Esse vídeo teve um grande efeito", diz Victor Qi, gerente chinês de um restaurante de macarrão em Nairobi, acrescentando que o número de clientes negros pareceu ter caído depois disso. 

Depois que o vídeo foi divulgado, um diretor da empresa de motocicletas chamou o comportamento de Liu de "transgressão infeliz", e um porta-voz da embaixada chinesa afirmou: "O modo de falar e o sentimento desse jovem não representam a opinião da vasta maioria do povo chinês". 

 

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