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reforma judicial argentina
Alberto Fernández e Cristina Kirchner durante abertura do ano legislativo na Argentina| Foto: Alejandro Pagni/AFP

É quase consenso na Argentina que a justiça no país não funciona bem. Juízes com posses que suas folhas de pagamento não podem explicar, sentenças sopradas pelo vento da política, decisões salva-vidas de pessoas influentes – ou dos amigos. Até mesmo o presidente da Suprema Corte, Carlos Rosenkrantz, designado pelo ex-presidente Mauricio Macri, já admitiu que havia uma “crise de legitimidade” no judiciário argentino ao criticar "excessos e personalismos" dos juízes. Pesquisas de opinião mostram que menos de 10% da população confia no Poder Judiciário.

Dado o contexto, era de se esperar que a proposta de reforma judicial apresentada pelo presidente Alberto Fernández na quinta-feira passada (30) seria bem-vinda pela população. Mas não foi. No mesmo dia foram ouvidos “panelaços” em vários bairros de Buenos Aires e na região metropolitana em manifestação contra a proposta. Apesar do belo discurso do presidente, há motivos para desconfiar que a reforma judicial tem seus objetivos escusos por parte dos kirchneristas.

Timing

A começar pelo momento em que está sendo proposta. A Argentina atravessa uma de suas piores crises econômicas e de saúde e a capital não consegue sair da quarentena interminável porque, com qualquer flexibilização, os casos de Covid-19 voltam a subir. Neste cenário, é de se imaginar que uma reforma judicial não deveria ser prioridade, não deveria ser onde o governo investe seu tempo e recursos. Essa, aliás, é uma das críticas da oposição. Por que a pressa?

Para Flavio González, professor de Direito de Integração da Universidade de Buenos Aires (UBA), a melhor maneira de entender o porquê é perguntar “quem tem pressa”. Não é Fernández que está interessado em uma reforma judicial, mas sim a sua vice, Cristina Kirchner, ré em vários processos por corrupção.

“Esta é uma proposta dela, fundamentalmente, porque nesse momento acredito que Fernández não estaria disposto a pôr em curso o tema da reforma judicial, com a crise econômica e a pandemia. Isso responde a pressões de Cristina Kirchner”, disse González à Gazeta do Povo.

O que propõe a reforma judicial

Um dos grandes problemas da justiça argentina tem nome e endereço: o Fórum Criminal Federal de Comodoro Py, em Buenos Aires. Um lugar onde tramitam os principais casos de corrupção do país - inclusive os de Cristina - e onde há anos existe muita suspeita em torno da honestidade e a independência dos juízes. É lá onde está centrada a proposta de reforma do governo kirchnerista.

“Procuramos superar que o poder de decisão se concentre em um pequeno número de magistrados que, como acontece atualmente, têm o poder de conhecer e decidir em quase todos os casos com relevância institucional e, consequentemente, midiática", afirmou o presidente ao anunciar a reforma.

O projeto propõe criar uma nova Justiça Criminal Federal que terá 46 tribunais de primeira instância: os 12 tribunais criminais atuais de Comodoro Py serão juntados aos 11 tribunais econômicos criminais e serão criados 23 outros novos. O objetivo, como disse o presidente, é diluir o poder dos atuais juízes.

Os novos tribunais deverão ser ocupados por juízes escolhidos por meio de concorrência pelo Conselho de Magistratura, um processo conhecido por ser bastante complexo e moroso - podendo levar anos. Até lá, juízes substitutos, escolhidos pela administração, preencherão as vagas. Todos os novos processos abertos na justiça criminal federal serão julgados pelos novos tribunais e não poderão ser distribuídos entre as varas já existentes por um ano. “Os novos casos federais - contra funcionários da administração atual ou anterior - serão investigados pelos novos juízes escolhidos por essa administração”, resumiu o jornalista do La Nacion, Hernán Cappiello.

A princípio os processos em que Cristina Kirchner é ré não devem mudar de mãos. Fernández disse que “todas as investigações e julgamentos em andamento estarão sob a jurisdição dos juízes ou tribunais orais que estão atualmente processando-os".

Mas segundo o professor González existe a possibilidade de que trocas aconteçam por meio de manobras como a que está em curso agora no Conselho de Magistratura. O governo kirchnerista está questionando as transferências de 10 juízes federais - inclusive de Comodoro Py - por considerar que elas não foram feitas da maneira adequada na gestão anterior. Entre os juízes que têm suas transferências questionadas estão um que participará do julgamento do caso “Cadernos de propina” (a Lava Jato argentina) e dois juízes das câmaras de apelação de Comodoro Py.

O debate sobre a Suprema Corte

Junto com a reforma, Fernández anunciou que criou um Conselho Consultivo que estudará, entre outros assuntos, o tema da Suprema Corte – sua composição, organização interna e o funcionamento – e sugerir outras propostas a serem incorporadas na reforma judicial.

“Este Conselho que estamos criando deve submeter propostas concretas sobre os assuntos que dizem respeito a uma melhor administração da justiça à consideração do presidente", disse Fernández.

Um dos assuntos que está em pauta, segundo a imprensa argentina, é o aumento do número de magistrados da Suprema Corte e sua divisão por salas. Se o número de magistrados do tribunal supremo passar dos atuais cinco para nove, como está sendo aventado, o governo atual teria a possibilidade de indicar quatro juízes ao tribunal superior.

Isso já aconteceu antes, no governo de Carlos Menem. Nos anos 1990, por causa da manobra que fez para aumentar o número de juízes do Supremo, Menem contou com um corte amigável que sempre acabava validando as decisões do Poder Executivo. Mas quando Néstor Kirchner assumiu a presidência do país, ele propôs voltar a um tribunal com cinco membros. Cristina Kirchner, na época senadora, impulsionou o projeto pela mudança, que acabou ocorrendo em 2006. Agora, o mesmo grupo político que diminuiu o número de integrantes da Suprema Corte, discute a possibilidade de aumentá-lo.

O Conselho Consultivo criado por Fernández conta com 11 juristas argentinos de renome. A composição do grupo é heterogênea: conta inclusive com o nome de Inés Weinberg de Roca, candidata proposta pelo ex-presidente Mauricio Macri para o cargo de Procurador Geral da Nação. Porém, a maioria é próxima ao kirchnerismo. O advogado de defesa de Cristina, Carlos Alberto Beraldi, também é integrante – o que foi bastante criticado pela oposição.

“Eles estão procurando maneiras de libertar Cristina”, disse a presidente do PRO, Patricia Bullrich.

Fernández disse que não é a favor de mais magistrados, porém afirmou que a Suprema Corte está funcionando mal. “Durante toda a minha vida, eu disse que o problema não está no número de membros do Tribunal. O Tribunal pode funcionar com cinco membros, o que eu digo é que o Tribunal está funcionando mal”.

González acredita que, apesar da opinião contrária do presidente, o conselho consultivo – cujos nomes foram aprovados por Kirchner – acabará indicando para este caminho.

“Para não ter que arcar com o custo político de um indulto ou perdão a Cristina, os kirchneristas querem usar de manobras processuais para que se decrete a nulidade dos expedientes judiciais nos quais ela foi denunciada. Se isso acontecer, justificam todo o discurso kirchnerista sobre Lawfare, de perseguição política por meio da justiça, que foi adotado pela esquerda na América do Sul, com Lula no Brasil, Correa no Equador e Morales na Bolívia”, opinou González.

O Conselho Consultivo de Fernández terá 90 dias para apresentar suas propostas de reforma ao presidente, portanto, o assunto que ainda promete render no debate político argentino.

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