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Sinos da igreja de Balangiga, nas Filipinas, que substituíram os que foram pegos por tropas americanas em 1901 | JES AZNAR/
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Sinos da igreja de Balangiga, nas Filipinas, que substituíram os que foram pegos por tropas americanas em 1901| Foto: JES AZNAR/ NYT

Alguns soldados norte-americanos estavam tomando o café da manhã em uma praça da cidade de Balangiga quando aldeões filipinos, entre eles homens disfarçados com vestidos, atacaram o grupo com facas. Quarenta e oito norte-americanos morreram. Isyo aconteceu em 1901 e, para o Exército dos Estados Unidos, a carnificina no centro das Filipinas foi a pior desde que o general Custer e suas tropas foram massacrados na Batalha de Little Bighorn 25 anos antes. 

 Em retaliação, o comandante dos EUA ordenou às suas forças que matassem todos os homens com mais de dez anos de idade e transformassem Samar, a ilha central das Filipinas, em um "deserto total". Tropas dos EUA mataram civis, queimaram casas e destruíram alimentos. 

 Os soldados também carregaram três sinos da igreja como troféus de guerra.  Agora, 117 anos depois, eles estão prestes a voltar para casa. 

 Apesar das objeções de alguns veteranos norte-americanos, o secretário de Defesa James N. Mattis deve assinar uma ordem autorizando o retorno dos sinos, segundo a embaixada dos EUA em Manila. 

 Mattis notificou o Congresso que o Departamento de Defesa pretende devolver os sinos, disse Trude Raizen, uma porta-voz da embaixada. No entanto, nenhuma data foi definida até agora. "Recebemos garantias de que os sinos serão devolvidos à Igreja Católica e tratados com o respeito e a honra que merecem", disse Raizen por e-mail. "Estamos cientes de que os sinos de Balangiga têm um significado profundo para várias pessoas, tanto nos Estados Unidos quanto nas Filipinas." 

 Troféus de guerra

Dois deles estão em exibição na Base da Força Aérea Francis E. Warren, no Wyoming. O terceiro, que cruzou duas vezes o Pacífico, é mantido no Camp Red Cloud, uma instalação do Exército dos EUA na Coréia do Sul. 

 Por mais de duas décadas, o governo filipino e os cidadãos de Balangiga em Samar tentaram fazer com que os sinos fossem devolvidos. "Os americanos deveriam entregá-los às Filipinas porque pertencem a nós. Fazem parte da nossa história", diz o prefeito da cidade, Randy Graza. 

 Os Estados Unidos governaram as ilhas de 1898 até 1946, quando as Filipinas conquistaram a independência. Desde então, os dois países têm sido aliados próximos. 

 Porém, com a eleição do presidente Rodrigo Duterte nas Filipinas há dois anos, os sinos adquiriram um novo significado.  Duterte, que vem pedindo uma "separação" dos Estados Unidos, citou a retaliação norte-americana na ilha de Samar em 1901 para combater as críticas de que seu governo tem violado os direitos humanos ao matar milhares de pessoas que a polícia diz serem usuárias de drogas. 

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 "Esses sinos são um lembrete da bravura e do heroísmo de nossos antepassados, que resistiram aos colonizadores americanos e sacrificaram suas vidas no processo", disse Duterte em seu discurso de inauguração no ano passado. “É por isso que hoje eu digo: devolvam os sinos de Balangiga. Eles são nossos. Eles pertencem às Filipinas. Fazem parte do nosso patrimônio nacional."  Ele lembrou que 28 filipinos morreram lutando contra os invasores americanos naquele dia. 

 Rolando Borrinaga, professor da Universidade das Filipinas que estudou o massacre e a subsequente retaliação, afirma que os sinos são a última questão contenciosa da Guerra Filipino-Americana, que terminou em 1902. "O retorno dos sinos poderia ajudar a dissipar grande parte da animosidade e da linguagem áspera que caracterizam o estado das relações entre os dois países nos últimos dois anos", diz ele. 

 História

Quando os Estados Unidos ocuparam as Filipinas em 1898, depois de adquirir o país, Porto Rico e Guam da Espanha, no final da Guerra Hispano-Americana, os norte-americanos encontraram resistência em muitas regiões. 

 Balangiga, uma pequena cidade costeira a 965 quilômetros a sudeste de Manila, era importante por seu comércio de abacá, uma espécie de cânhamo usado na fabricação de cordas e cordames de navios. Os Estados Unidos colocaram tropas por ali. 

 No entanto, muitos moradores da cidade vinham se irritando em silêncio com o que consideravam ser maus tratos dos soldados estrangeiros, incluindo trabalhos forçados e prisões injustificadas. Os norte-americanos, porém, pareciam não perceber a agitação. 

 No dia anterior ao ataque, as mulheres e crianças deixaram Balangiga silenciosamente. Alguns homens colocaram vestidos para manter a aparência de normalidade. Na manhã seguinte, quando serviram o café da manhã aos soldados na praça, os norte-americanos foram atacados com tradicionais facas de bolo. O toque de um dos sinos da Igreja Paroquial de São Lourenço nas proximidades teria sido o sinal para o ataque.  Dos 72 norte-americanos que compunham a guarnição, 48 foram mortos e apenas quatro escaparam ilesos. "Foi a pior derrota na guerra filipino-americana", conta Borrinaga. 

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 O comandante dos EUA, general Jacob Smith, respondeu ordenando a seus homens que matassem qualquer um que pudesse representar uma ameaça. "Não quero prisioneiros. Quero que vocês matem e queimem. Quanto mais gente matarem e queimarem mais vão me agradar. Quero que todas as pessoas capazes de carregar armas para cometer hostilidades verdadeiras contra os Estados Unidos sejam mortas." 

 O general, veterano do notório massacre de Wounded Knee, de 1890, acrescentou: "O interior de Samar deve ser transformado em um deserto total", o que lhe valeu o apelido de "Howling Jake". Alguns historiadores dizem que houve 50 mil mortos. Borrinaga afirma que documentos mostram que 39 pessoas foram assassinadas na hora. Após estudar os dados do censo antes e depois dos eventos, ele estima que a população de Balangiga tenha encolhido em cerca de 15 mil moradores durante a retaliação ao massacre, seja por assassinato, fome ou por causa das pessoas que deixaram Samar por outras razões. 

 Smith foi levado à corte marcial em 1902 e considerado culpado de conduta em prejuízo da boa ordem e da disciplina militar. Ele recebeu uma advertência de seus superiores. O tribunal foi indulgente porque o general era conhecido por fazer declarações extravagantes, e seus homens ignoraram muitos de seus comandos mais ultrajantes. O presidente Theodore Roosevelt, no entanto, repreendeu o general e ordenou que ele se aposentasse, segundo reportagem do New York Times. 

Vivendo do passado

 Balangiga, hoje uma cidade de cerca de 14 mil habitantes, nunca superou a perda dos sinos. Sua identidade moderna gira em torno do massacre e das represálias que se seguiram. 

Todos os anos, os moradores de Balangiga se lembram do massacreJES AZNAR/ NYT

A praça da cidade, onde ocorreu o assassinato, é dominada por um grande monumento que retrata a cena do café da manhã e dos moradores se aproximando dos soldados com seus bolos. O aniversário do massacre, 28 de setembro, é comemorado como um feriado, agora discretamente conhecido como Dia do Encontro de Balangiga. Na ocasião, ocorre uma encenação detalhada da matança e do roubo dos sinos. Desde meados da década de 1990, os presidentes das Filipinas vêm apelando aos presidentes norte-americanos para que devolvam os artefatos. Alguns defensores de seu retorno os compararam ao Sino da Liberdade dos EUA. 

 Alguns grupos de veteranos norte-americanos, porém, há muito se opõem a essa ação, argumentando que os sinos também fazem parte de sua herança e refletem o sacrifício de soldados dos Estados Unidos que morreram em Balangiga. 

 O retorno dos sinos, no entanto, é apoiado por descendentes dos soldados que sobreviveram ao massacre e por veteranos norte-americanos que serviram nas Filipinas. Dennis L. Wright, capitão aposentado da Marinha que mora nas Filipinas e fez campanha pela devolução, disse estar satisfeito com a decisão do secretário de Defesa. "Os sinos pertencem às igrejas que chamam os fiéis para as celebrações, não são troféus de guerra", diz ele. 

 

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