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Ivanyi em seu jardim em Budapeste, Hungria, 10 de fevereiro. Ele celebrou o casamento do primeiro-ministro, Viktor Orban, mas a divisão entre eles mostra como o líder abraçou o autoritarismo. Foto: Akos Stiller / The New York Times
Ivanyi em seu jardim em Budapeste, Hungria, 10 de fevereiro. Ele celebrou o casamento do primeiro-ministro, Viktor Orban, mas a divisão entre eles mostra como o líder abraçou o autoritarismo. Foto: Akos Stiller / The New York Times| Foto: NYT

Em uma noite de dezembro, enquanto milhares de húngaros se reuniram debaixo de neve para protestar contra o autoritário primeiro-ministro Viktor Orban, um pastor de barba branca esvoaçante chegou para lhes oferecer chá. Talvez por ser bem parecido com Papai Noel, sua presença ali era quase improvável.

Pois foi ele que realizou não só a cerimônia de casamento do premiê, como também batizou seus dois filhos mais velhos. Apesar disso, Gabor Ivanyi estava ali, em meio à neve, oferecendo bebida quente para os opositores e questionando a alegação de Orban de governar de acordo com os valores cristãos.

"Esse governo não tem nada em comum com o cristianismo. Se bobear, o pessoal pode até culpar Jesus Cristo por tudo o que está acontecendo", diz ele, a voz suave quase engolida pelos gritos da multidão.

A vida de Ivanyi, de 67 anos, seria extraordinária mesmo sem sua relação com o primeiro-ministro e o afastamento posterior. Dissidente proeminente sob o comunismo e uma das principais vozes morais nas três décadas desde a queda do regime, ele conquistou um status quase mítico entre os líderes de outras religiões.

Ideais abandonados

De acordo com uma lenda judaica, "em cada geração há 36 homens virtuosos, judeus ou gentios, e é por causa deles que o mundo não deixa de existir", ensina Robert Frolich, rabino da Grande Sinagoga de Budapeste, a maior da Europa. "Acho que Gabor é um deles", completa.

Entretanto, por mais idolatrado que seja por mérito próprio, a jornada de Ivanyi revela quase tanto a respeito de um dos líderes populistas de maior destaque no momento quanto de si mesmo. Para os críticos de Orban, o tratamento que ele dispensa a Ivanyi é um exemplo perfeito de como abandonou seus antigos ideais, desgastou a democracia húngara e transformou a religião em um instrumento.

Ivanyi trabalha em um celeiro em Budapeste com um refugiado afegão a quem deu abrigo. Foto: CreditAkos Stiller / The New York Times
Ivanyi trabalha em um celeiro em Budapeste com um refugiado afegão a quem deu abrigo. Foto: CreditAkos Stiller / The New York Times| NYT

A relação dos dois começou no fim dos anos 80, quando ambos eram figuras de destaque na luta contra o comunismo, e serve para lembrar o início da carreira de Orban como ativista liberal e pró-democracia.

Sua decisão de se casar na igreja para renovar os votos com a mulher, Aniko Levai, sete anos após a união no civil, em 1986, foi tomada mais ou menos na época em que se filiou à direita para tentar conquistar os eleitores conservadores e religiosos.

E sua decisão, em 2011, de retirar a divisão da Igreja Metodista de Ivanyi de uma lista de instituições religiosas registradas pelo Estado mostra, para muitos, sua guinada de conservador convencional para radical autoritário cujo governo aos poucos foi limitando a liberdade de imprensa, a independência judicial e a autonomia religiosa com a intenção de silenciar qualquer um que, como Ivanyi, lhe fazia e faz oposição.

"Quando nos conhecemos, tínhamos um objetivo em comum, mas agora ele é o líder de um partido fascista de extrema-direita, e essa é a raiz do nosso desentendimento", diz o religioso.

Ambições

Segundo de onze filhos, Ivanyi nasceu em 1951, de pai pastor e mãe professora, e cresceu em uma cidadezinha do norte do país. E, aqui, até sua ascendência entra em choque com a visão de Orban de uma única etnia para a Hungria: sua família é composta de descendentes de refugiados franceses, dissidentes tchecos e judeus.

"Não existe raça ou etnia húngara, apenas o idioma", afirma.

Foi só no fim dos anos 80, quando o movimento contra o comunismo começava a ganhar força, que Ivanyi conheceu um estudante de Direito voluntarioso chamado Viktor Orban.

Os dois nunca foram íntimos – como pastor, Ivanyi diz evitar fazer amizades –, mas se encontravam em reuniões políticas com frequência. Orban tinha acabado de fundar um grupo juvenil liberal proeminente, e Ivanyi se recorda bem do desdém do rapaz pela religião e sua ambição escancarada.

"Ele era uma pessoa que queria tudo da vida. Muita gente não gostava nem de jogar futebol com ele porque, se a bola saísse do campo, ele insistia em cobrar o lateral", conta.

Ivanyi conversa com homens sem-teto em um de seus abrigos. Foto: CreditAkos Stiller / The New York Times
Ivanyi conversa com homens sem-teto em um de seus abrigos. Foto: CreditAkos Stiller / The New York Times| NYT

Apesar disso, os dois estavam "no mesmo time", pelo menos metaforicamente. Após a queda do comunismo, em 1989, ambos foram eleitos ao Parlamento como membros de convenções partidárias liberais aliadas, embora Ivanyi nunca tenha feito parte de um partido formalmente.

Quando, de repente, Orban pareceu ter encontrado Deus, foi Ivanyi que ele convidou para renovar seus votos matrimoniais em um ambiente religioso.

"Orban teria conquistado uma vantagem política muito maior se tivesse se casado em uma igreja mais influente, ou seja, o fato de ter optado por um pastor liberal talvez tenha sido seu último gesto honrado/respeitável em relação à religião", afirma o pastor. Foi também uma das últimas vezes que os dois se encontraram.

Relações abaladas e vingança

Logo depois, Ivanyi deixou o Parlamento, enquanto Orban avançou ainda mais para a direita. O primeiro se concentrou em criar uma rede de abrigos para os sem-teto, escolas para crianças deficientes e casas de repouso para idosos, enquanto o segundo só pensava em conquistar o poder.

E foi o que fez, de 1998 a 2002, governando como conservador convencional – e aí então sua relação com Ivanyi, que nunca foi especialmente calorosa, azedou de vez. Depois de tomar posse, ele enviou uma mensagem ao pastor, por um intermediário, pedindo apoio público. O religioso recusou.

Ivanyi em casa com Mohaqiq. Foto: Akos Stiller / The New York Times
Ivanyi em casa com Mohaqiq. Foto: Akos Stiller / The New York Times| NYT

Quando Orban voltou ao poder, em 2010, dessa vez como nacionalista de direita, seu partido resolveu dar uma nova chance a Ivanyi, convidando-o para um evento comemorativo – e este não só recusou como o fez por meio de uma carta aberta.

Um ano depois, Orban se vingou. Além de nomear legalistas para chefiar o Judiciário, a Promotoria e a agência reguladora de imprensa, Orban tirou de cerca de 200 instituições religiosas o reconhecimento oficial, privando-as de subsídios significativos. Algumas delas tinham apenas alguns poucos seguidores, e outras pareciam operar mais em esquema comercial que religioso.

Mas a igreja de Ivanyi tinha cerca de 18 mil membros declarados, e seu trabalho e sua fé eram, como ainda são, amplamente elogiados e reconhecidos por líderes de outras religiões.

A igreja de Ivanyi tem cerca de 18 mil seguidores declarados, e seu trabalho e fé são amplamente elogiados por outros líderes religiosos. Foto: Akos Stiller / The New York Times
A igreja de Ivanyi tem cerca de 18 mil seguidores declarados, e seu trabalho e fé são amplamente elogiados por outros líderes religiosos. Foto: Akos Stiller / The New York Times| NYT

"Ele ajuda o pessoal em situação de rua, os pobres os refugiados... ou seja, está fazendo o que está escrito no Evangelho. A decisão de eliminá-lo da lista foi política, não teve nada a ver com o cristianismo como religião", afirma Miklos Beer, bispo católico de Vac, uma pequena cidade ao norte de Budapeste.

"Também teve um efeito restritivo nas 14 instituições que tiveram permissão de manter seu status oficial. Quando Orban introduziu leis que atingiam os sem-teto e os requerentes de asilo, as igrejas oficiais permaneceram em silêncio, como no caso da Católica, ou apoiaram a posição do premiê."

"Ninguém toca nos assuntos mais polêmicos, como a migração, a lei dos sem-teto, a posição de Roma. A sensação que se tem, mesmo com as igrejas maiores, é que elas têm necessidade de se omitir. Pessoalmente, eu me sinto envergonhado", confessa.

Por outro lado, Ivanyi não ficou quieto nem parado: desafiou repetidamente o primeiro-ministro, em palavras e ações, ao continuar a oferecer assistência aos sem-teto e refugiados, chegando até a dar a um afegão um quarto na própria casa, além de questionar a maneira como Orban apresenta a Hungria – como um país de etnia única – e a alegação de que governa com princípios cristãos.

"A forma como ele age vai contra os ensinamentos de Cristo. É exatamente o contrário do que a Bíblia prega a respeito do tratamento dado aos pobres, sobre justiça e serviço responsável", conclui Ivanyi.

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