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Trabalhadores do setor de saúde e pacientes protestam por causa da falta de medicamentos e péssimas condições nos hostpitais da Venezuela | LUIS ROBAYO/AFP
Trabalhadores do setor de saúde e pacientes protestam por causa da falta de medicamentos e péssimas condições nos hostpitais da Venezuela| Foto: LUIS ROBAYO/AFP

Estávamos sem água corrente havia seis dias. Eram 16h, fazia um calor sufocante e minha pele estava grudenta. Eu precisava desesperadamente de um banho. Todos precisávamos. 

Saímos de nosso apartamento no terceiro andar para o estacionamento diante de nosso prédio – um grande edifício de concreto de três andares, azul turquesa e de estilo utilitário, construído 40 anos atrás – para encher nossos baldes no único lugar com acesso a água, uma torneira na calçada usada para lavar carros. Fomos todos juntos: meu pai, minha mãe, meu irmão e eu. Encontramos outra família que também estava enchendo seus baldes, então tivemos que aguardar nossa vez. Hoje em dia há filas para tudo. 

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Já estamos quase acostumados com isso. Aprendemos a conservar baldes de água amarelada em casa sempre – é apenas uma questão de bom senso. Mas no sexto dia da falta d’água, ninguém mais no prédio tinha água, e estávamos ficando desesperados: o apartamento inteiro estava começando a feder como um banheiro público. Precisávamos urgentemente dar a descarga! 

As coisas não deveriam ser assim. Meu pai trabalha em um escritório e é o chefe de seu departamento. Meu irmão e eu somos universitários formados. Tecnicamente falando, somos da classe média. Imaginávamos que neste momento da vida já teríamos nossos próprios apartamentos e empregos em escritórios. Em vez disso, passamos nosso tempo todo correndo de um lado a outro para garantir as necessidades mais fundamentais. 

Quando eu estava acabando de subir três andares de escada pela segunda vez, carregando um balde pesado de água, a água voltou nas torneiras. Mais um dia como outro qualquer na Venezuela. 

‘Triângulo impossível’

Onde eu moro, o fornecimento de água é o serviço público menos confiável, mas a internet e a eletricidade não ficam muito atrás. Água, energia e internet: nosso triângulo impossível. Raramente se consegue as três coisas ao mesmo tempo. 

A internet, na minha experiência, só sai do ar quando realmente precisamos dela. Meu irmão estava aguardando ansiosamente uma oportunidade rara de marcar uma hora para solicitar um passaporte, o bilhete dourado para escapar deste caos. Ele estava no trabalho quando o site governamental onde se registram os pedidos de passaporte voltou online, de repente – uma oportunidade única e imperdível. Meu irmão não conseguiu acessar o site, já que estava no carro, então me telefonou com urgência, pedindo para eu marcar a hora por ele. Sabia que não teria outra chance por semanas. Nas raras ocasiões em que o site está no ar, fica imediatamente sobrecarregado. É importante agir com presteza. 

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Mas nossa internet estava fora do ar, então não pude fazer nada. Mais tarde, descobri que nossa provedora de acesso estava fora do ar em toda nossa cidade, Ciudad Guyana, que tem 1 milhão de habitantes. 

Outro problema é a eletricidade. Os blecautes fazem a internet cair também e levam embora qualquer esperança de um dia produtivo. Quando duram muito, também levam ao corte de água. Nossas bombas de água não são movidas a energia solar. 

Serviços nacionalizados

A situação é muito pior em outras partes do país. Onde eu moro, os blecautes geralmente duram cerca de uma hora e ocorrem a intervalos de algumas semanas. Acabam sendo uma desculpa prática para tirarmos um momento para bater papo com os vizinhos e falar mal do governo. 

É que eu sou uma pessoa bastante privilegiada. Em algumas regiões da Venezuela, os blecautes às vezes se prolongam por até 13 dias, e há comunidades em que nenhum dos serviços básicos funciona. Nenhum! Ainda temos gás natural fornecido em casa, então não precisamos encarar filas para comprar os bujões de propano. Essas filas podem levar o dia inteiro, a não ser que você chegue às 4h da manhã. 

Sabemos por que isso está acontecendo. Todas as empresas de serviços públicos foram nacionalizadas pelo governo durante a grande campanha de nacionalização travada por Hugo Chávez entre 2005 e 2009. 

Os socialistas acham que é errado cobrar por um serviço público. Então sabe o que acontece? Os serviços públicos nunca funcionam direito. É possível continuar sem investimentos ou manutenção por algum tempo, mas, depois de uma década, os efeitos disso se fazem sentir. 

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Tome-se o caso da CANTV, nossa provedora de internet. Antigamente ela pertencia à Verizon e funcionava razoavelmente, mas em 2007 Chávez decidiu desapropriá-la para marcar um tento contra o capitalismo internacional e levar a internet às massas (ou algo desse tipo). Nossa conexão com a internet hoje custa quase nada (isso eu reconheço), mas é uma das mais lentas do mundo e é completamente inconstante. Em algumas comunidades as pessoas roubam os cabos de internet para vender como sucata. Como a CANTV simplesmente não possui meios de repor os cabos, essas pessoas muitas vezes acabam sem acesso à internet. 

Ou tome-se o caso da Corpoelec, a única empresa nacional de eletricidade. Chávez pegou todas as empresas de eletricidade regionais e em 2007 as fundiu em uma única empresa gigante pertencente ao Estado. Hoje a Corpoelec é administrada por militares que evidentemente não sabem o que estão fazendo. 

Eles sempre têm desculpas a dar quando ocorre um blecaute nacional. Atribuem a culpa às estiagens, às chuvas, até a alguém com um bastão. Em um episódio inusitado eles atribuíram a culpa a um lagarto que teria roído alguns cabos. Mas geralmente colocam a culpa nos Estados Unidos, o bode expiatório de praxe aqui em nosso país. As desculpas sem sentido garantem alguns memes ótimos, mas a verdade é mais simples: zero de manutenção mais zero de investimento mais corrupção é igual a serviço péssimo. 

E a HidroBolívar? Sim, nossa empresa de água! Você já deve ter adivinhado: também ela é dependente do governo e é administrada por militares. 

É por isso que a água é amarela. Quando há água. 

*Carlos Hernández Blanco é economista e colaborador do Caracas Chronicles.

Tradução de Clara Allain.
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