• Carregando...
3 de agosto de 2009. vladimir Putin cavalga em suas férias em Kyzyk, sul da Sibéria
3 de agosto de 2009. vladimir Putin cavalga em suas férias em Kyzyk, sul da Sibéria| Foto: ALEXEY DRUZHININ / SPUTNIK / AFP

Há exatos 20 anos Vladimir Putin assumia o governo da Rússia no cargo de primeiro-ministro, nomeado por Boris Iéltsin.

Como Putin chegou ao poder?

O historiador e colunista de política internacional da Gazeta do Povo, Filipe Figueiredo, explicou que a ascensão de Putin ocorreu durante as guerras da Chechênia:

“Em 1991, após a dissolução da União Soviética e o conturbado período que se seguiu imediatamente, a República Chechena da Ichkeria declarou independência. O que não foi aceito por Moscou que, após tentativas de negociação, interveio com o uso da força em 1994. No último censo soviético, realizado em 1989, a Chechênia tinha uma população de cerca de 1,2 milhão de pessoas; um quinto eram russos, outro quinto representava a soma de outros grupos e três quintos eram chechenos, uma população ciscaucasiana de cultura clânica e de maioria muçulmana sunita.

Pela Chechênia passava um importante gasoduto que saía de Baku, no Azerbaijão, a linha Baku-Novorossiysk, além de importante oleoduto vindo do Daguestão, ambos frutos da exploração do Mar Cáspio, uma das regiões mais ricas em hidrocarbonetos do mundo. O trajeto do gasoduto foi alterado após o conflito. A intervenção federal russa de 1994 soava como tarefa tranquila, mera submissão de um movimento rebelde.

Após vinte meses de guerra, dez mil militares mortos, dezenas de milhares feridos, além de centenas de milhares de civis mortos ou deslocados, a Federação Russa, sucessora da poderosa máquina de guerra soviética, foi obrigada a ir para a mesa de negociação com a pequena república. O resultado foi assombro mundial e pesadíssimo golpe no orgulho russo.

Quando se fala em orgulho russo, não se deve reduzir apenas ao patriotismo dos russos e a imagem que façam de sua própria nação. De acordo com o próprio Vladimir Putin, a dissolução soviética legou um enorme problema para ser solucionado; mesmo em 2017, cerca de 16 milhões de russos vivem em países anteriormente parte da URSS, transformados em minoria étnica em um estalar de dedos.

A negociação na Chechênia não mostrou apenas que a Rússia talvez não conseguisse manter todo seu gigantesco território, herança do império dos czares, mas também que sequer poderia garantir a segurança de seus compatriotas pela região.

A valorização do idioma russo, da nacionalidade russa e a proclamação da defesa de falantes de russo distribuídos pela ex-União Soviética são pilares importantes da ideologia de Putin, algo frequentemente negligenciado quando é retratado. Uma versão geopolítica de “Minha pátria é a língua” de Fernando Pessoa, com o nome de Doutrina Karaganov - alusão ao cientista político e conselheiro presidencial que a formulou.

Em agosto de 1999, militantes chechenos, com apoio financeiro saudita e voluntários wahabitas radicais estrangeiros, invadiram a república russa vizinha do Daguestão. Esse foi o gatilho da Segunda Guerra da Chechênia. Putin tornou-se então primeiro-ministro, sob a presidência de Boris Iéltsin, que governava a Rússia desde 1991; no início de 1999, Putin era diretor do Serviço de Segurança Federal, o FSB, sucessor da KGB para assuntos internos.

Putin conduziu a guerra com os chechenos, em abordagem diferente do primeiro conflito, dividindo os chechenos seculares dos jihadistas. Vitórias militares deram notoriedade para seu nome. Em 31 de dezembro do mesmo ano, o presidente Iéltsin renunciou, resultado da soma de problemas de saúde, abissal crise econômica, além de mais uma guerra nas fronteiras.

Como previsto pela constituição, o primeiro-ministro assumiu interinamente o cargo até a eleição, que aconteceria cinco meses depois. Foi o início da presidência de Putin. Em março de 2000, ele visitou tropas russas na Chechênia. Nos dois meses seguintes, Putin declarou vitória no conflito e venceu as eleições. Da humilhação da primeira guerra surgiu uma nova liderança, até aquele momento pouco conhecido do público”.

Um símbolo pop

No esforço de Vladimir Putin para construir a influência global da Rússia, uma de suas armas mais potentes é a sua própria imagem.

Duas décadas de esforços de especialistas do Kremlin esculpiram um ícone internacional indecifrável a partir de um ex-burocrata municipal que usava ternos mal ajustados. O fascínio da Rússia não gira mais em torno de Tchaikovsky e Tolstoi; hoje, a atração está centrada em um presidente de cara fechada e, ocasionalmente, sem camisa.

Quando Putin ascendeu à liderança na véspera de Ano Novo em 1999, ele estava sucedendo o envelhecido Boris Iéltsin na administração de um país que ainda precisava encontrar um senso de direção após o colapso soviético.

"Nós intensificamos o mistério de Putin de propósito", disse o estrategista político Gleb Pavlovsky, um dos principais arquitetos da personalidade pública de Putin que, em 2011, entrou em conflito e cortou laços com o Kremlin.

Em um estado fraco, Pavlovsky disse que é preciso "criar uma imagem de poder".

O ethos Putin confere à Rússia poder de atração política que supera as barreiras linguísticas, as fronteiras nacionais e as críticas nos principais meios de comunicação do Ocidente. Ela reforça o país entre os políticos populistas e seus apoiadores — do sudeste da Ásia ao Oriente Médio, na extrema direita da Europa e na Casa Branca em Washington — e fornece a Moscou um ponto de entrada na política de outras nações.

Enquanto os laços da Rússia com o Ocidente se deterioravam, a imagem do presidente adquiriu um significado adicional. Washington tornou-se alvo da dureza de Putin. Na esteira da Guerra do Iraque e da crise financeira global, o Kremlin viu Putin se tornando um símbolo que canalizava queixas globais contra a influência americana.

Em fevereiro de 2007, Putin apresentou a defesa intelectual de um mundo "multipolar" em um discurso na Conferência de Segurança de Munique. Sua fama na cultura pop ajudou essa mensagem a ressoar além do sistema estabelecido da política externa. Naquele verão, o Kremlin publicou pela primeira vez uma imagem de Putin sem camisa — caminhando ao longo das margens de cascalho de um rio siberiano com botas do exército, calças de camuflagem e uma cruz no pescoço.

A força física real é fundamental para a marca Putin. Um filme biográfico da TV estatal russa deste ano incluiu cenas com música dramática de Putin em aparelhos de musculação, com o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder descrevendo o "enorme programa de condicionamento físico" de seu amigo. Ele acrescenta com admiração: "Não consigo acompanhar".

Peskov, o porta-voz do Kremlin que trabalha com Putin desde 2000, nega que sua equipe se envolva em qualquer imagem artificial. Ele rejeitou a afirmação de Pavlovsky de que a imagem do herói de Putin era direcionada para uma audiência internacional. Putin é realmente um amante do esporte e da natureza, disse Peskov, e ao publicar imagens do presidente em férias sem camisa, o Kremlin está simplesmente respondendo ao enorme interesse em como ele passa seu tempo.

20 anos de poder de Vladimir Putin em imagens

  • 19 de agosto de 1999. O presidente russo Boris Iéltsin cumprimenta o primeiro-ministro Vladimir Putin durante encontro no Kremlin, Moscou
  • 6 de abril de 2000. Vladimir Putin usa um uniforme da Marinha ao assistir exercícios táticos da Frota do Norte no Mar Barentsevo do submarino nuclear "karelia"
  • 16 de agosto de 2005. Vladimir Putin ajusta seus óculos de sol durante festival internacional aéreo e espacial MAKS-2005 em Zhukovsky, na região de Moscou
  • 16 de agosto de 2005. Vladimir Putin posa para fotógrafos na cabine de um Tupolev-160, um jato bombardeiro estratégico, no aeroporto militar de Olenogorsk, perto de Murmansk
  • 16 de agosto de 2005. O presidente da Rússia Vladimir Putin posa para fotógrafos no aeroporto militar de Olenogorsk
  • 19 de agosto de 2005. Vladimir Putin dirige o seu Volga 1956 durante cerimônia de abertura de um túnel na região de Krasnodar
  • 14 de setembro de 2005. Vladimir Putin discursa em abertura de cerimônia no Museu Guggenheim, Nova York, EUA
  • 14 de julho de 2006. Presidente russo Vladimir Putin observa o seu primeiro carro, um Zaporozhets, que ele comprou quando ainda era estudante em 1972, na região de São Petersburgo
  • 8 de novembro de 2006. Vladimir Putin segura uma pistola durante visita à recém-construída sede do Departamento de Inteligência da Rússia, em Moscou
  • 30 de junho de 2007. Vladimir Putin caminha no campo em visita a uma exposição sobre agricultura em Rostov-on-Don
  • 15 de agosto de 2007. Vladimir Putin com um rifle de caça na República de Tuva
  • 11 de outubro de 2008. O primeiro-minsitro russo Vladimir Putin segura um pintinho em visita a uma exposição agro-industrial em Moscou
  • 3 de agosto de 2009. vladimir Putin cavalga em suas férias em Kyzyk, sul da Sibéria
  • 5 de agosto de 2009. O primeiro-ministro da Rússia Vladimir Putin nada durante férias em Kyzyl, no sul da Sibéria
  • 24 de julho de 2010. Primeiro-ministro russo Vladimir Putin pilota uma motocicleta Harley Davidson Lehman Trike ao deixar um encontro de motociclistas no Lago Gasfort, perto de Sevastopol, na Península da Crimeia, Ucrânia
  • 16 de maio de 2015. Vladimir Putin em partida de hóquei no gelo em Sochi
  • 30 de agosto de 2015. Vladimir Putin se exercita em uma academia na residência estatal Bocharov Ruchei em Sochi
  • 23 de fevereiro de 2017. Vladimir Putin participa de uma cerimônia no Túmulo do Soldado Desconhecido no Kremlin para celebrar o Dia do Defensor da Pátria, em Moscou
  • 4 de agosto de 2017. Vladimir Putin em banho de sol durante férias na remota região de Tuva, sul da Sibéria
  • 19 de setembro de 2018. vladimir Putin atira com um fuzil sniper (SVC-380) durante visita ao Parque Patriota militar em Kubinka, na região de Moscou

Primeira presidência

A presidência de Putin começou controversa. Seu primeiro decreto presidencial, ainda em 1999, dava imunidade ao ex-presidente Iéltsin e aos membros de sua família, devido às investigações sobre fraudes e corrupção nos processos de privatização do aparato econômico soviético, na década de 1990. Em agosto de 2000, mais um golpe em sua imagem, durante o desastre do submarino nuclear K-141 Kursk.

Até hoje não se sabe o que causou o afundamento da embarcação, custando a vida de 118 russos, bilhões de rublos e afetando a imagem já sucateada das forças armadas russas. Imagens de Putin em atividades de lazer durante suas férias no Mar Negro, enquanto a crise se desenrolava, custaram um preço a sua imagem.

Economicamente, entretanto, a presidência de Putin conseguiu diversos sucessos, o que contribuiu para a recuperação de seu prestígio. Seus primeiros anos foram de reforma, com mudanças fiscais e desregulação de diversos setores. Angariou apoio dos principais oligarcas do país, proprietários das maiores empresas. Entre 2000 e 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) da Rússia, a soma de toda a economia nacional, dobrou em valores reais, uma média de crescimento de 7% ao ano.

O consumo também aumentou. O número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza passou de 30% para 14% em oito anos. Superávits orçamentários e inflação sob controle foram internacionalmente elogiadas. Porém, esse crescimento era baseado na alta do preço das commodities, marcante no início do século 21.

Algumas das maiores empresas do ramo são controladas pelo Estado russo, embora com ações comercializadas: Alrosa, de diamantes; Transneft, de dutos; Rosneft, de petróleo; e Gazprom, de gás natural. Todas elas possuem como acionistas pessoas supostamente próximas de Putin. Com a queda dos preços, a economia russa arrefeceu. O setor industrial russo, entretanto, não foi deixado em segundo plano, apesar de incentivados pelas commodities.

O crescimento da produção industrial russa nos oito anos de Putin foi de cerca de 75%. Muitos investimentos foram feitos especialmente em cibernética e na área nuclear, além de subsídios militares para evitar uma defasagem muito grande perante os EUA. De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), que mede gastos militares por todo o mundo, o orçamento militar russo saltou de 271 bilhões de rublos em 2000 para 1544 bilhões em 2008. Desconsiderando a inflação e adotando um valor constante em dólares, ainda se trata de mais que a dobra do orçamento de defesa.

A primeira presidência de Putin, no que concerne sua projeção externa, possui dois momentos basilares. Em julho de 2000 é assinado um documento de "Conceitos de política externa da Federação Russa". Em resumo, as prioridades são: a segurança do país; impacto global para criação de uma ordem mundial estável e justa, em um mundo multipolar; criação de condições externas para o desenvolvimento econômico da Rússia; proteção dos direitos e interesses cidadãos russos no exterior; promover uma percepção positiva da Rússia e dos russos.

Ou seja, a Rússia com Putin priorizou sua defesa e a defesa de seus interesses e exigiu ser ouvida como igual, não como subordinada ou de “segunda categoria”. Não aceitou um mundo unipolar com os EUA como potência dominante, como muitos defenderam ou interpretaram após 1991. Esse é um ponto fundamental. Para o Ocidente, a Guerra Fria acabou e teve um vencedor, os EUA. Para os russos, a Guerra Fria foi um round de uma luta muito maior e mais longeva, um choque geopolítico que remonta ao Grande Jogo do século 21. E podem até conceder a derrota daquele round ideológico, mas não aceitou que o maior país do mundo em território, que domina a ponte terrestre entre Ocidente e Oriente, seja marginalizado.

O outro momento foi o Discurso de Munique, de fevereiro de 2007, quando Putin falou na Conferência de Munique sobre Política de Segurança. O discurso foi uma forte denúncia do que Putin considerou violações feitas pelo Ocidente.

Ele afirmou que um modelo mundial unipolar não era apenas inaceitável, mas impossível. Disse que a força só poderia ser autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, qualquer coisa fora disso seria o fim do Direito Internacional. Para ele, os EUA extrapolaram suas barreiras nacionais em todos os temas, incluindo a imposição de agenda a outros países. Que a Otan violava as negociações e mantinha sua expansão rumo às fronteiras russas, e mesmo assim a Rússia reagia com paciência.

Todas essas declarações fortes poderiam soar como uma provocação. Mas é importante perceber que, para Putin e seu eleitorado, tratava-se de uma reação. A Rússia foi expressamente contra a autorização do uso da força contra Saddam Hussein em 2003. Putin inclusive enviou um importante aliado ao Iraque, Yevgeny Primakov, com a missão especial de negociar uma saída de Saddam do poder.

Mesmo assim, violando a resolução do Conselho de Segurança, os EUA invadiram o Iraque. A Rússia recebeu, por toda a década de 1990, promessas de que armas estratégicas seriam limitadas na Europa e de que a Otan não se expandiria rumo aos países do antigo Pacto de Varsóvia. Promessas que não foram cumpridas.

Eminência parda

Em 8 de maio de 2008, Putin foi nomeado primeiro-ministro da Rússia pelo presidente Medvedev; que, por sua vez, foi e é primeiro-ministro com Putin. No sistema semipresidencialista russo, quem detém grande parte do real poder executivo é o presidente. Primeiro-ministro é uma expressão popular para o chefe do gabinete ministerial, quem conduz as políticas cotidianas. Esse arranjo permitiu que Putin não ferisse a constituição, mantivesse um aliado no poder e continuasse nos holofotes políticos.

As diferenças entre ambos foram no campo econômico, com Medvedev mais liberal que Putin, além do novo governo passar pelos efeitos da Crise de 2008. No campo geopolítico e interno, não existiram grandes diferenças, daí a expressão "Governo em tandem", já que a influência e prestígio de Putin, teoricamente subordinado ao presidente, em muito o eclipsavam.

Ideologia

Putin conseguiu o controle do seu partido e dominou o cenário eleitoral russo. Ganhou prestígio perante boa parte da população, seja pelo crescimento econômico ou pela restauração do orgulho nacional russo. E com uma política externa que combatia a negação da Rússia como uma das potências mundiais. Ideologicamente, o que sustentou e orientou essas políticas?

Putin dedicou tempo e energia para resgatar e promover a identidade russa. Uma versão do século 21 da máxima do Czar Nicolau I, que reinou entre 1825 e 1855: Ortodoxia, Autocracia e Nacionalidade. Putin substituiu a "autocracia" pelo conceito de democracia soberana, formulado por Vladislav Surkov.

Surkov age fora dos holofotes, ao ponto de suspeitarem dele ser autor de romances sob pseudônimos. Parte do "estado-maior" da presidência russa desde 1999, foi o principal ideólogo ao lado de Putin, e conselheiro de grande influência. Com um histórico de teatro e formação em Economia, Surkov tem grande alcance no Kremlin. A ideologia de democracia soberana, de sua autoria, foi adotada pelo movimento da juventude Nashi, pejorativamente acusado de ser uma "Juventude Putinista" e de ser exemplo de um culto de personalidade de Putin.

Putin é abertamente cristão ortodoxo praticante. Dentre outros exemplos, as críticas de Putin aos movimentos LGBT foram frequentemente vistas como uma defesa pública de valores cristãos ortodoxos. Outro exemplo público da fé de Putin é seu hábito de participar do ritual ortodoxo da Epifania, no mês de janeiro, em que fiéis mergulham em lagos congelados.

A Igreja Ortodoxa fornece, no cotidiano e na ideologia, um farol anti-Ocidente, com bases conservadoras e a valorização de uma herança cultural e comunitária exclusiva aos russos. Cerca de 42% da população é cristã ortodoxa. As outras três religiões oficialmente aceitas pelo Estado russo são: Islã, Judaísmo e Budismo.

Putin possui relações próximas com o Patriarca Cirilo de Moscou, que inúmeras vezes deu declarações que endossaram os objetivos geopolíticos russos, como a declaração de que a guerra na Síria era uma "guerra santa". A relação entre a Rússia de Putin e a Igreja Ortodoxa é próxima ao ponto de Cirilo declarar que o período Putin é um "milagre de Deus".

Indo além do imaginário, o resgate da identidade nacional russa e do legado do Império Russo é inegável, como ferramenta de renovação política a partir da estética. Putin progressivamente reforma a identidade do Estado russo para algo mais próximo dos tempos czaristas. As forças armadas russas estão mudando sua identidade da estrela vermelha para o laranja e preto imperial de São Jorge. Os regimentos militares russos estão mudando suas insígnias para símbolos e bandeiras com a estética pré-1917. A recém-criada Guarda Presidencial usa uniformes do mesmo modelo da guarda do Czar.

A grandeza territorial russa e seus consequentes bônus, como a riqueza mineral, seria a razão de ser da grandeza da Rússia como nação e como potência. Garantir a manutenção de sua extensão territorial e a influência em seus povos e vizinhos por laços culturais e ideológicos, como a fé ou a herança imperial, seria garantir a segurança e a prosperidade da Rússia.

Em 2001, é assinado um Tratado de Amizade com a China, relações cada vez mais próximas desde então, com dezenas de encontros entre Putin e o líder chinês Xi Jinping, que classificou a relação, em 2013, como "especial".

Hoje, os dois países possuem uma relação econômica na casa da centena dos bilhões de dólares, especialmente em infraestrutura e energia. Em 2003 foi criada a Organização de Cooperação de Xangai, que já conta com oito membros: China, Índia, Rússia, Paquistão e quatro países ex-soviéticos da Ásia Central. Em outras palavras, a organização engloba metade da população mundial e 80% da terra seca eurasiana contínua.

Essa relação busca criar uma ordem multipolar, incluindo o desafio ao predomínio do dólar como moeda corrente internacional. Hoje, Rússia e China realizam comércio em suas respectivas moedas. A criação da União Econômica Eurasiana é outra iniciativa russa que permite explorar e manter seu vasto território, além de balancear seu histórico déficit de um porto de águas quentes oceânicas para comércio global.

Segunda presidência

A segunda presidência de Putin, iniciada em 2012, foi marcada, além de acusações de fraude eleitoral, pelo distanciamento dos EUA e da Europa Ocidental. Em seu primeiro dia, Putin assinou catorze decretos, incluindo metas para o desenvolvimento econômico, fortalecendo a imagem de que, com ele, a economia russa cresceria.

Em fevereiro de 2014, após os protestos Euromaidan na Ucrânia, que derrubam o governo pró-Moscou em nome de um movimento pró-Europa, soldados armados ocuparam, rapidamente, as principais posições dentro da península da Crimeia. A Rússia negou que tais tropas eram de suas forças armadas, afirmando ser milícias de russos locais.

Não portavam nenhuma insígnia e cobriam o rosto, apelidados de "homenzinhos verdes" ou "pessoas educadas" na internet. A análise de seus equipamentos de ponta, entretanto, não deixou margem de dúvidas de que eram tropas de elite russas. A velocidade e o segredo da operação de coup de main foram creditadas à reforma militar de 2008.

A Ucrânia, até 2012, era lar de cerca de oito milhões de russos, a maioria na estratégica península da Crimeia e no leste do país. A Crimeia é uma península de localização estratégica. Controla o acesso ao Mar de Azov e possui ricas reservas de hidrocarbonetos. Sedia importantes bases aeronavais russas desde o período dos czares, essenciais para o acesso às águas do Mediterrâneo, e que foram arrendadas pelo governo ucraniano aos russos, contrato que temia-se encerrado com o novo governo de Kiev.

Além disso, mais de 90% da população se identificava como russa; de fato, até 1954 a Crimeia era parte da Rússia, não da Ucrânia. Após a rápida ocupação e a "virada de casaca" das principais autoridades da Crimeia ucraniana, a península declarou sua independência unilateral.

Posteriormente, em referendo condenado internacionalmente, 80% dos eleitores decidiram juntar-se à Federação Russa, com 2% favoráveis à Ucrânia e 16% de abstenções. O referendo não foi aceito pela maioria da comunidade internacional, até por ter sido realizado sob ocupação.

A Rússia, entretanto, aceitou o resultado, sob a justificativa de que essa era a autodeterminação da Crimeia. A outra ação russa foi a de apoiar, de forma direta ou indireta, grupos separatistas e nacionalistas russos no leste da Ucrânia. Temendo perseguição do novo governo de Kiev, que proibiu o idioma russo logo em seus primeiros dias, boa parte da população russa que residia na Ucrânia migrou ou clamou por uma possível intervenção.

O conflito se desenrola desde então, causando milhares de mortes e cerca de dois milhões de deslocados, internos e externos. Ficou infame pela derrubada do voo civil MH17 da Malaysia Airlines, que causou 298 mortes e não foi esclarecido, com suspeitas recaindo sobre rebeldes pró-Rússia utilizando equipamento de procedência russa. Além disso, causou severa distensão na relação entre a Rússia e o Ocidente.

No Oriente Médio, Putin e a Rússia, conduzida pelo ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov, têm se tornado cada vez mais um ator decisivo, o único líder mundial que consegue transitar com todos os líderes locais, de Teerã ao Cairo, de Riade à Istambul, passando por Damasco e por Tel-Aviv. Demonstração de força russa foi dada na intervenção do país na guerra civil da Síria. Além de exibir novos e modernos equipamentos perante o mundo, a Rússia garantiu a permanência do regime aliado de Bashar al-Assad.

Fora do plano Eurasiano, cabe destacar a expansão da política externa russa sob Putin. Novos destinos e polos de negócios, como África, América Latina e Oceania. Foi o primeiro líder russo a visitar a Austrália. Também visitou diversos países latino-americanos banhados pelo Pacífico, além de Argentina e Brasil.

No caso brasileiro, visitou o país duas vezes e compartilham o Brics, junto com China, Índia e África do Sul. Essa cooperação multicontinental também contribuiu para a imagem de Putin como criador de uma nova ordem mundial multipolar, enfrentando um suposto monopólio dos EUA e o Ocidente.

Economicamente, a Rússia sofre impacto das sanções internacionais impostas como represália de suas ações na Crimeia e na Ucrânia; mais um motivo para, em parceria com a China, construir um sistema financeiro fora do dólar. Por outro lado, a Rússia novamente garantiu seus interesses perante o que era visto como uma ameaça do avanço da Otan. Além disso, as empresas russas poderão explorar as riquezas naturais da Crimeia.

Putin, assim como nenhum outro líder mundial de uma grande potência, não pode se dar ao luxo de praticar uma política externa baseada em mera agressão ou megalomania. Seus pontos geopolíticos são claros, reafirmados no discurso de Valdai, de outubro de 2014, uma atualização daquele de Munique. Não existem vilões ou mocinhos no tabuleiro internacional, mas interesses e sua projeção ou defesa.

Ao garantir os interesses do Estado russo e de cidadãos russos, Putin consolidou sua imagem e sua liderança. Certo ou errado, tal julgamento não cabe quando a intenção é evidenciar uma das origens da força de Putin perante a população russa. Presença internacional, alianças, expansão da influência russa, modernização da máquina de guerra do país, tudo isso contribuiu para consolidar Putin.

No ano passado, Putin foi reeleito para mais um mandato de seis anos com 56 milhões de votos, 76,6% de um total de mais de 73 milhões de votos. Com a vitória, Putin vai presidir a Rússia, nas atuais regras, até 2024, quando somará quase 25 anos à frente do país. Dos líderes russos e soviéticos no século 20, Putin superará os 22 anos de governo de Nicolau II, ficando atrás apenas dos trinta anos de governo de Stálin.

Em 2019, porém, Putin enfrenta questionamentos e as opiniões sobre ele se dividem quanto mais ele fica no poder. Na Rússia e fora dela existem críticas à censura à imprensa e à perseguição a dissidentes, entre outras questões. Uma recente onda de protestos toma conta de Moscou, motivada pela recusa do governo municipal em registrar candidatos da oposição para as próximas eleições. Esse episódio é apenas o mais recente em uma história mais longa de protestos que desafiam o futuro político de Putin.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]