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2040: um capítulo orwelliano na sociedade brasileira
| Foto: Wikimedia

Introdução

A história é cíclica. Ao longo dos séculos os processos de estabelecimento de uma sociedade são permeados por construções retóricas, busca do controle social e assentamento de versões ideológicas para justificar a presença de grupos hegemônicos.

A representação dos fatos é imanente à construção social. Da mesma forma, a manipulação da verdade faz parte desse processo. O objetivo de controlar e fazer prevalecer uma versão em prol de grupo ou interesse específico é observado em diversos momentos na história da humanidade desde a Roma Antiga, a Idade Média e, seguramente, na contemporaneidade.

Após a Segunda Guerra Mundial o mundo passava por um período de reflexão sobre os fatores que haviam convergido para a eclosão de tão acentuado conflito, assim como já se preparava para adentrar em uma nova realidade com poderes antagônicos que estava se delineando. Foi uma época marcada por uma intensa guerra de versões e propaganda.

Nesse cenário, George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair) expressou em memoráveis obras as suas percepções sobre tudo aquilo que viveu no período e as suas perspectivas sobre o futuro. Após vivenciar os conflitos da Guerra Civil Espanhola, dissensões com a Revolução Russa e toda sorte de opressão oriunda de Estados totalitários no período, o britânico externou com acuidade tais fatos em notórios trabalhos literários, merecendo, pois, relevante destaque o livro intitulado 1984.

Este texto pretende fazer um recorte de 1984 para os dias atuais, sobretudo para a realidade brasileira. As construções de versões e técnicas de falseamento da verdade são palpáveis em nossos dias. Tal qual sucedeu em Oceânia, o mundo presencia uma propagação das então denominadas fake news. Nesse contexto, buscar-se-á, inicialmente, esboçar uma alegoria brasileira em um fictício e orwelliano futuro de 2040, onde novas realidades foram projetadas e reformuladas a fim de assegurar o saber entendido como verdade. Tais representações, como se poderá notar, consistirão em sombras de eventos que ocorreram no passado, mas ainda persistem visíveis em nossa sociedade.

Em uma perspectiva alegórica, mas perfeitamente amoldada ao panorama atual, passar-se-á à análise, sob um prisma orwelliano, dos desafios da liberdade de imprensa diante da influência das novas conjunturas de disseminação de notícias inverídicas na sociedade brasileira.

2040

Era um dia quente e seco de agosto e os relógios marcavam 13 horas. Fabiano Ramos preparava-se para cumprir suas tarefas no Ministério da Informação, onde, junto com outros cooperadores, era responsável por concluir a digitalização de todos os livros, periódicos e qualquer informe de papel fazendo as correções orientadas pelo Partido Nacionalista. O ambiente era um tanto quanto insalubre, pois o ar seco do cerrado combinado com o bolor de papéis em decomposição formava um ambiente propício para o agravamento de doenças respiratórias tão constantes em Tropicália.

Após a Grande Conflagração, os habitantes de Tropicália passavam por intensas reeducações desenvolvidas pelo Partido. Os danos causados nas décadas antecedentes pelos contendores vinham paulatinamente sendo expurgados e corrigidos. Tudo antes era tão deletério e sombrio que todos os eventos relacionados eram indignos de recordação. Remanescia, apenas, a constante lembrança de como a vida mudara para melhor com os novos rumos alcançados pelo Grande Salvador. Fabiano sabia que, em um passado longínquo, seus antepassados passaram grande fome na região hoje conhecida por Tropicália Setentrional a ponto de terem até de se alimentar de um papagaio de estimação. Os anos que sucederam constituíam um hiato apenas noticiado pelos jornais e literatura do Partido como “período depurador”.

A vida possuía um matiz monocromático, mas nenhum componente necessário para o regular funcionamento de um ser humano faltava. A sociedade de Tropicália passava por reiteradas atualizações, pois as guerras com o Eixo Franco-Saxônico e com o Conglomerado de Senkaku se acirravam a cada ano que passava. O deserto da Saazônia, que se estendia de uma costa a outra do continente, era uma importante barreira geográfica para conter possíveis invasões dos inimigos. Com a elevação dos mares, causada pelas ações nocivas do inimigo supremo Edward Murrow, boa parte da população migrou para as partes mais altas, onde encontrou abrigo bélico fornecido pelo Grande Salvador. Em tempos de acentuada inconstância, o líder máximo assegurou a uniformidade de informações e homogeneidade do estilo de vida necessárias à qualidade de vida dos habitantes de Tropicália.

A sociedade de Tropicália era dividida em três estratos: o Centro, responsável por coordenar as diretrizes do Partido Nacional; a Milícia, encarregada pela parte executória; e os consumidores, que eram a base da sociedade. Os principais ministérios eram os da Informação, Tolerância e Provisão.

A rotina era cadenciada por um afável sistema desenvolvido pelo Grande Salvador. Todas as intrusões à sã doutrina estavam sendo desintegradas. O Grande Salvador era onipresente, onipotente e, sobretudo, onissapiente. O seu vasto conhecimento sobre o corpo humano, técnicas medicinais, tratamentos adequados, natureza, atmosfera, mudanças climáticas, economia, política e a condição dos seres viventes propiciaram o refúgio necessário e o desapego às preocupações pela população. A determinação e segurança ostentadas pelo Grande Salvador, como grande Leviatã, eram suficientes para garantir os melhores interesses de Tropicália. Nunca na história existiu pessoa mais honesta do que ele e suas doutrinas eram exatas. Fabiano bem sabia todas essas características, pois diariamente era notificado em seus dispositivos pessoais sobre como o Grande Salvador havia sido agraciado com inefável intelectualidade, discernimento e segurança. Em contrapartida, todo discurso do ódio era direcionado a Edward Murrow, indivíduo que ousou questionar sua liderança. Este era também responsável pelo patrocínio da rebelião dos povos ocupacionais (nova referência àqueles que no passado eram conhecidos como “povos tradicionais”) que habitavam na Saazônia e em outras regiões do território, e por doutrinas hereges que atentavam contra o progresso de Tropicália.

Em sua lida diária, Fabiano era constantemente notificado sobre o avanço das tropas nas guerras pelas terras férteis da Groenlândia e da Antártica. O uso de teletelas foi superado e substituído por um sistema mais saudável e libertário chamado de “Panóptico”. Cada habitante possuía um dispositivo pessoal, com câmera, sistemas de reconhecimento facial, de voz e não podia ser desligado. O dispositivo era responsável também por alertar cinco vezes por dia os slogans do Partido: “Arma é cura. Doutrinar é saber. Liberdade é tecnologia”.

Tal avançado aparato não só deixava todos a par dos acontecimentos como era a ferramenta exclusiva de comunicação entre os habitantes de Tropicália. O falar passou a ser permitido apenas em casos estritamente protocolares. Toda comunicação tinha de ser feita por intermédio dos aplicativos e registros eletrônicos fornecidos no dispositivo. Este já estava também adaptado ao Novoidioma, corrigindo automaticamente palavras não mais existentes como, por exemplo, “corrupção”, “desmatamento” e “florestas”. Uma vez que o Grande Salvador eliminou toda sorte de condutas desviantes no âmbito governamental, tal palavra nem sequer seria mais necessária no cotidiano de Tropicália. A eliminação da vegetação tóxica e implantação das dunas protetivas também ensejou adaptação, assim como o “desenvolvimento produtivo” do meio ambiente para garantia do progresso. Outro exemplo também ocorreu com a palavra “alteridade”, que passou a ter o significado de “qualidade de considerar, estimar, o Grande Salvador”.

Por intermédio dos dispositivos eletrônicos o Partido impulsionava o que poderia ser visto pelos moradores de Tropicália, assim como monitorava toda comunicação a fim de coibir a prática dos crimepensamento e crimepostagem, cuja repressão era fortemente exercida pela Polícia das Ideias, órgão vinculado ao Ministério da Tolerância. Todas as notícias eram redigidas e informadas pelo partido, assim como era diariamente atualizada a lista de inimigos do Grande Salvador. Em caso de constatação de pensamentos subversivos, os indivíduos por eles responsáveis passavam por um obscuro processo de cancelamento. Noticiários e literatura fora dos dispositivos eletrônicos eram proibidos. Em papel, apenas embalagens de produtos alimentícios, para forrar móveis e para fins higiênicos.

Todo sistema panóptico propiciava liberdade aos consumidores de Tropicália, na medida em que os desincumbia de se debruçar sobre questões complexas e desnecessárias.

Fabiano havia acabado de olhar as notificações de seu panóptico pessoal quando terminara de cumprir seus afazeres diários. Ao regressar para a sua habitação, passou em frente a um antiquário, o qual lhe despertou a curiosidade e o levou a entrar. No seu interior pouquíssimos objetos, sendo muitos apenas carcaças de dispositivos eletrônicos do passado. Ao examinar o fundo de um armário consumido por cupins, observou um raro livro amarelado aberto em uma página, com o seguinte excerto sublinhado: “como se fosse possível mudar a natureza das coisas apenas mudando seus nomes”. Chamava-se Utopia.

De 1984 a 2020

O capítulo antecedente procurou mesclar elementos do livro 1984 com situações que são presenciadas em 2020. Buscou-se parodiar como seria perfeitamente possível produzir um capítulo brasileiro à luz do pensamento de George Orwell com fatos prospectivos em 2040. A notícia inverídica e apta a manipular é potencializada nos dias de hoje pelas ferramentas tecnológicas e se alastra diante da velocidade dos novos métodos comunicativos como um vírus altamente carregado de carga tendenciosa e maliciosa.

Conforme assentado no início do presente trabalho, o referido ciclo se reproduz na sociedade atual. A leitura de 1984, cuja confecção se deu em 1948, demonstra uma inquestionável contemporaneidade e aplicabilidade quanto à interpretação das formas de poder e manipulação da verdade. O livro constitui um oportuno referencial para compreender os fatos ocorridos na atualidade.

Em 2020 a sociedade se deparou com uma pletora de informações disseminadas com propósitos deliberados de conturbar e assegurar o interesse de grupos específicos. Em uma atualização tecnológica da realidade de George Orwell, os fatos presentes na contemporaneidade brasileira são alvos das denominadas fake news, em que ocorre uma contínua adulteração e transmudação de mentiras para realidades erigidas como válidas. Dados e discursos oficiais passam por semelhantes processos de mimetização e adaptação a fim de imbuir no receptor uma crença distorcida dos fatos.

Em toda a sua existência, a imprensa sempre exerceu um papel determinante como um alicerce democrático de compreensão e fiscalização. O esmagamento da liberdade individual pressupõe justamente o controle da informação e a sistemática deturpação da verdade. Constitui um processo renovável e que pode ocorrer em qualquer sociedade. O assoreamento de um rio decorre da paulatina acumulação de pequenos resíduos que ao longo do tempo se aglutinam a ponto de obstruir a vazão da água até secar por completo. Com efeito, pequenas alterações, consideradas inicialmente como de pequena relevância ou até mesmo inofensivas, podem consubstanciar componentes impulsionadores para um panorama mais gravoso.

Impende-se, pois, combater não apenas os sintomas dessa nova mazela política e social, mas sim a sua causa.

A obra de George Orwell ecoa em nossos dias. As analogias e comparações são constantes e inevitáveis. Os interesses políticos, de controle social e manipulação para a manutenção do grupo hegemônico são, nas palavras do autor britânico, “pendulares”. Na atualidade, observa-se apenas uma atualização nos métodos, mas uma persistência no propósito. As fake news têm reunido os mais eficientes e deletérios métodos de captura das liberdades individuais, da verdade e afirmação do poder, sobre os quais o primado da livre e democrática imprensa terá por grande desafio prevalecer.

Conclusão

O ano de 2020 evidenciou no Brasil uma conjuntura social e política que reuniu elementos que poderiam ser seguramente projetados para uma adaptação imaginária de um capítulo de 1984 de George Orwell. Conforme se procurou demonstrar, os componentes utilizados na renomada obra possuem uma densa carga interpretativa e atemporalidade, de modo que podem, ainda, ser considerados para uma apurada compreensão dos dias atuais.

No Brasil e no mundo vicejam exemplos de veículos de imprensa que resistem à rendição intelectual e persistem em produzir um jornalismo livre e democrático. O respeito pela verdade histórica e decência intelectual constituem o escopo de proeminentes jornalistas que perseveram em reportá-la de forma desvinculada de interesses econômicos e políticos.

George Orwell conclui o livro 1984 narrando a completa rendição da personalidade de consciência de Winston Smith ao Grande Irmão. Após intensos processos de tortura física e psicológica, o intelecto do protagonista sucumbe e acaba por se entregar irrestritamente aos interesses do partido. Tomado por um contínuo e gradual processo de manipulação, Winston Smith teve a sua mente finalmente conquistada, de modo que, segundos antes de ser executado, resignado, refletia sobre o peito acolhedor e o amor que passara a nutrir pelo Grande Irmão.

Tal nefasto processo de extrema dominação e condicionamento de pessoas pode ser medido em substanciais escalas quando se observa a propagação de notícias inverídicas com o assenhoreamento das emoções e construção de indivíduos acríticos que reagem apenas a reflexos digitais. Assim como a dor, a febre e o mal-estar são os efeitos de uma agressão orgânica, o ódio, a calúnia e a manipulação são consequências da inoculação de um corpo estranho no seio social, condensado, hoje, sob o timbre de fake news. Impende-se, pois, combater não apenas os sintomas dessa nova mazela política e social, mas sim a sua causa.

A busca pela verdade deve ser produzida ativa e livremente. A verdade é uma construção que pressupõe uma visão poliédrica e dialógica dos fatos. Tais predicados são imanentes de uma imprensa livre que galgou espaço contribuindo para o progresso da humanidade com relatos críticos e fidedignos de importantes acontecimentos. As novas tecnologias devem, igualmente, ser potencializadas nesse processo a fim de contrapor o fluxo de informações inverídicas. Onde se levantou a opressão e a distorção, a imprensa sempre esteve presente firmando uma oposição comprometida com a verdade. Será na perseverante perseguição dos primados da alteridade e da democracia que a imprensa livre logrará a superação desse estado de inverdades e contribuirá para a construção de uma sociedade justa com uma redenção intelectual.

Fernando Procópio Palazzo é advogado, mestrando em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e especialista em Direito Penal e Criminologia. Este artigo foi adaptado da versão original publicada na “Revista Jurídico Luso-Brasileira”.

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