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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Há quase seis mil anos, quando os sumérios inventaram a escrita, não queriam senão fixar de modo estável os seus registros contábeis, na esperança de que os símbolos gravados nas tabuletas de barro seriam compreendidos de maneira inequívoca, sem interpretações dúbias, pelos escribas de qualquer localidade do seu nascente império.

Da mera escrituração mercantil, aquela notação rudimentar evoluiu para formas literárias elaboradas, a mais famosa delas a Epopeia de Gilgamesh, obra representativa da pujança de uma língua que sobreviveu como idioma de alta cultura no Oriente Médio, servindo a sucessivos povos, por mais de dois milênios, muito tempo após o desaparecimento político dos sumérios. O mesmo fenômeno viria a ocorrer, mais tarde, com o sânscrito na Índia e com o latim na Europa Medieval. Nesta, com o decorrer dos séculos, enquanto tudo mudava, fronteiras, dinastias, armamentos, construções, vestuário, alimentação, costumes, gerações de eruditos estabeleciam um diálogo contínuo, afiançado pela estabilidade do latim. Assim fixaram-se as bases para a ascensão das universidades, o Renascimento e a ciência moderna. A existência de um idioma fixo, com prescrições seguras, foi um dos pré-requisitos para este florescimento cultural. Por meio da escrita, aproximaram-se as mentes separadas pelo tempo, unindo-se em uma experiência intelectual compartilhada.

Queremos a instabilidade, a mudança consecutiva, o aggiornamento sem fim

O povo brasileiro, pelo jeito, prefere apostar no oposto. Queremos a instabilidade, a mudança consecutiva, o aggiornamento sem fim. Talvez seja a nossa maldição, nosso trabalho de Sísifo, ou o fruto de uma mentalidade novidadeira impregnada em um país que já teve não sei quantas moedas e constituições. Somente no século XX foram oito acordos e reformas ortográficas. Quase uma alteração a cada década! Essa flutuação do idioma rompe o elo entre as gerações. Pais aprendem a escrever de um modo diferente dos seus filhos. Nunca, em lugar nenhum, ergueu-se uma grande cultura em alicerces assim movediços. A língua portuguesa muda tanto no Brasil, e tão rapidamente, que não tarda o dia em que o acesso aos clássicos estará obstruído para sempre, e os livros de um Cruz e Sousa, ou de um Machado de Assis, serão leitura para especialistas em Linguística e Filologia.

Ah... os especialistas! Falando neles, pergunto: quem foi que disse que somente eles, e não os grandes escritores, têm a autoridade sobre a língua? O mais recente Acordo Ortográfico é obra de um consórcio entre professores e políticos. Anos de discussão nas universidades e no Parlamento culminaram em uma estrovenga incoerente, que só veio para atrapalhar a nossa vida, e que foi empurrada goela abaixo, na canetada de um presidente analfabeto.

A língua e seu sistema de escrita são entidades diferentes: Novas regras, mas a língua é a mesma (artigo de Rodrigo Tadeu Gonçalves, professor de Letras na UFPR e diretor da Editora UFPR)

Agora Inês é morta, a ortografia do Lula veio pra ficar. Que fique, mas que seja a última. Ortografias prescrevem a forma correta de se combinar as letras. Não existem para ser fáceis ou difíceis; sua função é estabelecer a norma única de comunicação, que inclua a todos, não só os vivos, mas os mortos e aqueles que virão. A estabilidade da língua é o fundamento da cultura, sem ela não há garantia de que um texto será entendido no futuro. Se a bagunça ortográfica continuar, nem mesmo este modesto artigo, curto e simples, poderá ser lido por um brasileiro do século XXII.

Diogo Fontana é editor e escritor, autor do livro “A Exemplar Família de Itamar Halbmann” (Danúbio, 2018).
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