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O príncipe da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, durante encontro com o presidente da Rússia,  Vladimir Putin, no G20, Osaka – Japão.
O príncipe da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, durante encontro com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, no G20, Osaka – Japão.| Foto: Yuri KADOBNOV/POOL /AFP

Em 19 de junho, um especialista da ONU divulgou o relatório que pedia uma investigação sobre a participação de Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro daquele país, no assassinato do jornalista Jamal Khashoggi. No dia seguinte, em Washington, o Senado votou pelo bloqueio da venda de armas, no valor de bilhões de dólares, na tentativa mais recente do Congresso de suspender o apoio norte-americano à guerra liderada pelos sauditas no Iêmen. Para completar, no mesmo dia, em Londres, a justiça decidiu que o Reino Unido agira ilegalmente ao aprovar a exportação de armas aos sauditas.

São sinais inegáveis de reprovação, símbolos de uma crise política crescente cujo resultado é incerto. O fato é que o reino saudita gozou da proteção das forças do Atlântico ao longo de quase todo o século de sua existência, mas os laços anglo-americanos com a Casa de Saud talvez estejam entrando em um período turbulento, com a ameaça de a relação se tornar politicamente insustentável no momento em que seu fundamento estratégico inerente começa a desmoronar.

Como isso aconteceu? Basicamente, devido a dois eventos que, combinados, comprometeram profundamente a reputação internacional da Arábia Saudita – e o apoio transatlântico com que conta.

O primeiro foi a guerra desastrosa no Iêmen. Os fatos são bem conhecidos, mas vale uma recapitulação: uma coalizão liderada pelos sauditas é responsável pela maioria dos milhares de óbitos resultantes do conflito, atingindo "de maneira ampla e sistemática" a população civil, segundo os especialistas que se reportaram ao Conselho de Segurança da ONU. O bloqueio perpetrado pela aliança é a principal causa para o que já é a pior crise humanitária do mundo, com 85 mil crianças pequenas tendo morrido de inanição desde 2015.

Os laços anglo-americanos com a Casa de Saud talvez estejam entrando em um período turbulento

Washington e Londres são facilitadores dessa carnificina, fornecendo uma assistência vital sem a qual a campanha de bombardeios liderada pelos sauditas não poderia se manter. Com a enxurrada cada vez mais forte de condenações, defender o suprimento de armas que sempre foi uma das principais características do vínculo do Ocidente com Riad se tornou uma tarefa quase impossível.

O segundo foi o assassinato grotesco de Jamal Khashoggi, cuja ordem se acredita quase unanimemente que tenha vindo do alto escalão do governo saudita. Nos meses que antecederam o crime, Mohammed bin Salman se mantivera ocupado, apresentando-se como um reformista iluminado – imagem que, por mais implausível, muitos em Washington e Londres se mostraram bem satisfeitos em ratificar. O homicídio em Istambul (combinado à repressão intensificada à dissidência no reino saudita) deixou a narrativa da "reforma" em frangalhos, passando a simbolizar a crueldade, a imaturidade e o mau julgamento do príncipe herdeiro.

Nos EUA, podemos perceber duas correntes congressionais opostas à atual situação da aliança com a Arábia Saudita: na primeira, nomes democratas tradicionais e alguns republicanos, engajados com a relação subjacente, mas com medo de que a lambança de Donald Trump e Mohammed bin Salman faça com que seja difícil sustentá-la politicamente. Eles querem que as fontes da crise atual se resolvam, e não que sejam deixadas de lado para se proliferar – ou seja, uma conclusão rápida para a guerra do Iêmen e um desfecho satisfatório para o assassinato de Khashoggi.

A segunda, representada pela esquerda emergente do Partido Democrata, que inclui o senador Bernie Sanders e a deputada Ilhan Omar, vem articulando preocupações mais fundamentais em relação ao apoio norte-americano para o reino saudita. Seu objetivo é uma mudança substancial da política, e não a preservação do relacionamento. Uma vez que a geração de eleitores mais jovens e mais diversa vem se consolidando para desafiar a política convencional, esse prospecto não pode ser descartado.

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Embora as vertentes se combinem para resultar em uma dissidência impressionante – a Casa Branca de Trump está sendo forçada a apelar para ordens executivas para sobrepujá-la –, o apoio generalizado ao reino em Washington permanece por enquanto. Mas não pode ser dado como favas contadas.

Se o mundo finalmente levar a sério a emergência climática, uma grande parte das reservas petrolíferas existentes terão de permanecer no solo, deixando os sauditas amarrados a uma riqueza que não poderão explorar. Enquanto o petróleo for a essência da economia mundial, o controle estratégico sobre as reservas do Golfo será uma das grandes fontes de poder do sistema global. A riqueza do petrodólar gerada pela venda do petróleo também constitui uma fonte lucrativa de investimento e transações de armas. Se o mundo se descarbonizar, porém, é difícil entender por que o apoio irrestrito a um Estado autoritário e empobrecido seria visto em Washington como digno do custo político. Como tantas outras coisas, a mudança climática pode alterar a política externa.

Uma dinâmica semelhante vem se desenhando no Reino Unido, outro grande aliado ocidental de Riad. O julgamento da semana passada não suspendeu toda a venda de armas e é passível de apelação, mas, por enquanto, impediu materialmente essas exportações, o que é muito significativo, dada a importância dos aviões britânicos nos bombardeios da coalizão e o destaque central que a venda de armas ocupa na relação entre os dois países.

Ainda mais significativo é o processo de mudança doloroso, mas definitivo, por que passa o Partido Trabalhista britânico, semelhante ao dos democratas nos EUA. A crítica da liderança ao histórico de direitos humanos do regime e à sua conduta no Iêmen é uma constante, e os legisladores pró-sauditas vêm sendo marginalizados. E essa influência é reforçada por um número maior de membros, mais poderosos, também engajados na definição de novos rumos para a política externa nacional.

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Os laços estratégicos entre as forças do Atlântico e a Casa de Saud sobreviveram a muitas crises ao longo dos anos e, pelo que se sabe, pode muito bem sobreviver mais um século; as ameaças existenciais, entretanto, são óbvias, e se alguém em Riad, Washington ou Londres tem um plano sério de preservação do estado de coisas atual, está mantendo o segredo trancado a sete chaves.

Os esforços recentes dos sauditas para se manter próximos da Casa Branca de Trump têm se provado inegavelmente bem-sucedidos – mas o reino pode se arrepender de apostar todas as fichas em uma presidência que parece mais representativa dos aspectos mais feios do passado norte-americano do que de seu futuro. Nos anos vindouros, o regime está arriscado a se ver quase sem dinheiro, sem amigos e sem tempo.

David Wearing é especialista nas relações entre os países do Golfo e o Reino Unido e é autor de "AngloArabia: Why Gulf Wealth Matters to Britain".

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