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 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

“Um grupo de homens vive preso numa caverna, acorrentados dos pés à cabeça, de modo que não conseguem se virar para a entrada e somente enxerguem a parede ao fundo. Acostumados à escuridão, pensam que as sombras projetadas representam a própria realidade, pois não conhecem outra, já que sempre viveram sob as sombras.” Nessa alegoria, Platão (A República – Livro VII) critica a obstinação das pessoas em permanecerem na ignorância (escuridão), em não se libertarem das correntes que as aprisionam ao senso comum, falsas crenças, preconceitos e ideias enganosas.

Os movimentos separatistas, ao propagarem o fim da corrupção ou do desemprego como vantagens do desmembramento territorial, criam uma realidade própria e ignoram as bases econômicas do capitalismo. Como se problemas estruturais do sistema vigente se resumissem em características regionais.

Assistimos, na atualidade, a uma difusão de movimentos separatistas. Alguns almejam transformar o Rio Grande do Sul em território autônomo; outros querem o mesmo para o Nordeste brasileiro; outros galgam a divisão do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e assim por diante. A lista é imensa.

Os discursos variam pouco. Com algumas peculiaridades, os argumentos se repetem. A influência externa é depositária de toda a culpa pelos problemas estruturais, como se a separação regional fosse capaz de resolver questões como o desemprego e a corrupção. De forma maniqueísta e preconceituosa, criam o “nós” (limpinhos, trabalhadores e honestos) e o “eles” (sujos, vagabundos e corruptos). Tentam construir a ilusão da superioridade regional, como se o mal estivesse do outro lado das fronteiras. A separação passa a ser vendida como solução para todos os problemas estruturais.

Em períodos de crises políticas e econômicas, ideias simplistas são vendidas com maior facilidade

No movimento “o Sul é o meu país” fica evidente a ideia de uma suposta drenagem de recursos regionais pelo poder central, como se os piratas de Brasília estivessem canalizando os impostos do Sul “produtivo e trabalhador” para o Nordeste “improdutivo e aproveitador”. Pensamento semelhante (e de forma mais radical) verificamos no movimento “São Paulo livre”, em que os nordestinos são apontados como os “ladrões de empregos” dos paulistas. Curiosamente, a tônica inversa está presente no movimento “Nordeste independente”, em que a acusação é de que as empresas do Sudeste seriam protegidas pelo poder central, prejudicando o desenvolvimento do povo nordestino.

O mito da superioridade de um povo, distribuído numa determinada região, em detrimento de outro não é novidade na história da humanidade. A experiência mais trágica e nefasta da modernidade talvez tenha sido quando os nazistas venderam a ideia de que os judeus eram responsáveis pela derrocada econômica da “raça ariana”. O mecanismo é sempre o mesmo: constrói-se artificialmente um bode expiatório, que receberá toda a carga negativa e a culpa pelos problemas estruturais e, assim, mantêm-se os privilégios e interesses da elite regional. Não é sem importância o fato de os movimentos separatistas recorrentemente estarem ligados à direita tradicional, com críticas preconceituosas a programas como Bolsa Família, cotas raciais, ProUni etc. O problema, na realidade, é de classe social e não regional.

Os movimentos separatistas escondem (ou não sabem) que a corrupção é estrutural no capitalismo, e não uma característica regional. O próprio Adam Smith, famoso teórico da economia clássica, escreveu em 1776 sobre a natural ganância e incapacidade para considerações morais do “ser capitalista”. Na lei da selva, vale tudo para obtenção do lucro e a liberdade econômica gera mecanismos próprios de concorrências desleais, entre elas a corrupção.

Assim também devemos analisar a geração de empregos, como dependente da estrutura do sistema capitalista e não como característica moral de um ou outro administrador do Estado. Nosso sistema passa por crises cíclicas, criadas por um descompasso na relação entre produção e consumo – essa é uma das características do sistema vigente e pouco tem a ver com as atitudes virtuosas ou não dos políticos de Brasília. Isso não significa que ações progressistas de determinados políticos não devam ser valorizadas. Muito pelo contrário, devemos, sim, enaltecer medidas que visam garantir direitos aos mais pobres em períodos de crise, mas sem ilusões de que, no capitalismo, seria possível romper plenamente com a exploração por meio do Estado.

Em períodos de crises políticas e econômicas, ideias simplistas são vendidas com maior facilidade. As pessoas querem soluções e por isso se deixam levar pela aparência sedutora de propostas moralistas, que escondem, na realidade, princípios fascistas e preconceitos de classe. De nada adianta “separar” se as riquezas continuarem sendo apropriadas pelos mais ricos. Enquanto não houver distribuição igualitária dos bens produzidos, continuaremos de costas para o povo e voltados à proliferação de chavões que atendem meramente aos interesses de elites regionais.

Devemos nos libertar dos grilhões que nos prendem à caverna e ver o mundo como ele é. O discurso separatista apresenta o mundo por meio de sombras, que fantasiam a realidade. Promete acabar com a corrupção e o desemprego ignorando as bases econômicas do capitalismo. Em vez de discutir separação territorial, devemos decidir se queremos que nossas riquezas sejam apropriadas por uma pequena parcela da população.

Thiago Bagatin é professor e criador da página “A América Latina é o meu país”
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