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Meses atrás, cineastas retiraram os seus filmes da programação do Cine-PE porque não concordavam com a presença de “O Jardim das Aflições” e “Real – O Plano por Trás da História” no festival. Segundo eles, “a escolha de alguns filmes para esta edição [a de 2017] favorec[ia] um discurso alinhado à direita conservadora e grupos que financiaram e compactuaram com o golpe ao Estado democrático de direito ocorrido no Brasil em 2016”. Logo depois, alguns dos principais críticos do país assinaram um manifesto apoiando e reforçando a decisão desses cineastas. Já no último Festival de Brasília, no debate acalorado que se seguiu à exibição de “Vazante”, a diretora Daniela Thomas teve de ouvir comentários políticos e externos que fugiam totalmente da proposta, do retrato produzido pela narrativa e do filme em si.

É verdade que em nenhuma das duas situações houve uma censura plena. Embora o Cine-PE tenha sido cancelado por um período de tempo, ele acabou acontecendo e os dois longas responsáveis pela grande polêmica foram exibidos – “O Jardim das Aflições” até recebeu prêmios de Melhor Longa-Metragem pelos júris popular e oficial. “Vazante”, por sua vez, participou da programação da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e já está em cartaz no circuito comercial. No entanto, independentemente disso, esses dois casos servem para ilustrar não só o patrulhamento ideológico que há décadas tomou conta do cinema brasileiro, como também a intolerância que certos grupos pregam, mas buscam travestir de posicionamento político.

Hoje a censura de maneira velada, através de argumentos que fingem moderação, mas negam ao outro a possibilidade de coexistir pacificamente

No primeiro e mais emblemático deles, a própria convivência democrática foi colocada em xeque. Tanto os cineastas que se afastaram do Cine-PE quanto os críticos que os apoiaram revelaram ser “impossível” participar de um festival em que filmes com algum viés conservador estão presentes na programação. É verdade que, ao fazerem isso, exerceram um direito legítimo do ponto de vista legal. Afinal, ninguém é obrigado a fazer parte de um evento que lhe desagrade. Todavia, é vital lembrar duas coisas. Primeiro que o filme sequer fora conferido por aqueles que se posicionaram contrariamente a ele – e pensar que críticos apoiaram o julgamento alheio de uma obra sem terem assistido a ela é de uma tristeza monumental. Segundo, é importantíssimo ressaltar que, da perspectiva moral, essa postura é atroz: afirmando estarem defendendo a democracia, os responsáveis por esse gesto foram completamente antidemocráticos. Se tivessem visto os filmes saberiam que eles não são propagandísticos e gozam do total direito de existir ao lado de qualquer outra obra. Democracia é pluralidade de ideias e vozes. Tomar a subjetividade individual como verdade absoluta e desmerecer qualquer produção artística que não coadune com ela é o fim de qualquer intenção democrática.

No segundo caso, por seu turno, apesar de não terem existido ações tão definitivas quanto no primeiro, os comentários feitos por algumas das pessoas presentes no festival indicaram que, em determinados assuntos, a representação artística deve ser realizada de acordo com as exigências de certa parcela da sociedade ou exclusivamente por elas. Em outras palavras, “Vazante” não foi analisado a partir dos seus possíveis méritos ou deméritos artísticos e sim pelas circunstâncias de sua feitura, ou seja, pelo fato de Daniela Thomas ser branca de classe média, como se esses atributos fossem necessariamente ruins e incompatíveis com a produção de uma obra que retrata o período da escravidão. Infelizmente, para alguns críticos, pouco importa se o filme é bom ou não, pois a única luz com que ele deve ser visto é a da transformação social.

Do mesmo autor: Muito além do Oscar (artigo publicado em 28 de setembro de 2017)

Leia também: “Profanamos o templo da religião degradada do esquerdismo” (entrevista com Josias Teófilo, publicada em 30 de outubro de 2017)

Diante desse cenário, não dá para fugir da constatação de que, se um cineasta deseja que o seu projeto seja recepcionado, hoje, no Brasil, sem polêmicas, xingamentos ou boicotes, ele precisa respeitar ou defender a agenda política e os discursos ideológicos daqueles que o julgarão. Se uma obra oferece somente o retrato de uma figura ou um acontecimento que pode ser associado ao conservadorismo, ela não pode ser exibida juntamente com aquelas que fazem a mesma coisa do outro lado do espectro político, e se um filme é produzido dentro daquilo que muitos enxergam como o “status quo” da produção cinematográfica atual, ele é automaticamente considerado irrelevante como obra de arte. Esse tipo de conduta não sinaliza apenas a falência da crítica e do cinema ― uma vez que um filme deve ser analisado estritamente por suas qualidades artísticas ―, mas também rupturas preocupantes na estrutura democrática com a qual recepcionamos realizações artísticas.

É sabido que a história do cinema está repleta de casos de intolerância. Sendo a arte do século que ficou caracterizado, principalmente, pelo totalitarismo, não podia ser diferente. As distintas manifestações do nazismo e comunismo no Ocidente e Oriente quase sempre obrigaram artistas a abandonarem os seus países natais e buscarem abrigo em nações mais livres. Curiosamente, na maioria desses casos, a censura se mostrava explicitamente. Hoje se revela de maneira velada, através de argumentos que fingem moderação, mas negam ao outro a possibilidade de coexistir pacificamente. Invariavelmente, o que isso nos ensina é que o caminho a ser trilhado é sempre o da compreensão. Se um ponto de vista divergente do nosso é apresentado com qualidade, contundência e relevância, nosso dever como cidadãos é aceitá-lo como legítimo e aprender a conviver pacificamente ao seu lado. Caso contrário, teremos de chamar a arte de propaganda e, assim, caminharemos para o mesmo abismo no qual a história da humanidade tantas vezes se jogou.

Miguel Forlin é crítico de cinema, colunista do Estado da Arte, e colabora com diversos veículos do ramo.
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