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O combate de Carnaval e de Quaresma, por Pieter Brueghel.
O combate de Carnaval e de Quaresma, por Pieter Brueghel.| Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

O hábito de revisar e reviver, durante os 40 dias que sucedem o carnaval, os erros, os pecados e os exageros cometidos durante a vida não é uma relíquia histórica distante dos nossos dias. A contrição, termo familiar aos cristãos que se dirigem à confissão, foi-nos concedida de herança pelos homens do século 12 que descreveram a prática da penitência e do arrependimento. Criticada de forma justa por ser um mal do Ocidente contemporâneo – pois nos levaria a nutrir um constante sentimento de culpa pelos nossos progressos mais óbvios –, a penitência, objetivo ultimo da contrição, deve ser também entendida como uma forma de confessar nossos valores e reafirmar o interesse na promoção da felicidade e do bem-estar.

Após o período de carnaval, encerrado na Quarta-Feira de Cinzas segundo a liturgia cristã, período em que se confrontam valores tradicionais e novas propostas (boas ou não), passamos a nos questionar: qual ideia, vencedora desse combate, norteará nossa contrição durante a quaresma?

Narrava uma historieta castelhana, datada de aproximadamente 1330, o confronto entre dois personagens que simbolizavam o fim das festividades seculares e o início do período litúrgico de penitência: Dom Carnal contra Dona Quaresma. Em carta enviada aos povos, Dona Quaresma, apresentando-se como serva do Senhor e enviada a todo pecador, dizia, em rimas e versos: “Sabeis, que me disseram, que há cerca de um ano, / que anda Dom Carnal sanhudo muito estranho / estragando minha terra, fazendo muito dano / vertendo muito sangue, do que mais me assanho”. Por motivo das reclamações, a santa dona convocaria os penitentes e aqueles que jejuavam a desafiar Dom Carnal em combate: “Diz-lhe de todo em todo, que de hoje até sete dias / a minha pessoa mesma, e as minhas companhias / iremos pelear com ele, e com todas suas birras / creio que não me detenha nas carniçarias”.

Dom Carnal, por sua vez, “guloso” e “orgulhoso”, que ameaçava os jejuns e abstinências e se fartava com longos banquetes, aceitou o desafio a ser realizado no próximo dia santo. Chegando o momento do confronto, ambos os lados apresentaram seus exércitos. O orgulhoso senhor trazia como soldados os leitões, os faisões, as galinhas, as lebres e outros animais de grande porte e que faziam juras contra a temperança e o comedimento. Chegando durante a batalha para apoiar a santa dona, vieram as sardinhas, os caranguejos, os alhos-porós, os feijões e demais peixes e vegetais que compunham a dieta de um abstêmio penitente.

O autor da narrativa medieval trecentista, Juan Ruiz – sobre o qual não se tem mais informações para além de que foi arcipreste de Hita durante o reinado de dom Afonso XI, entre 1312 e 1350 –, enfatizou que a vitória de Dona Quaresma foi facilitada pelos maus costumes de seu adversário. Dom Carnal e seus soldados, que banquetearam às vésperas da batalha, foram encontrados sonolentos ou dormindo, sem grandes condições de irem à luta. Ferido gravemente e vendo seus soldados caírem, Dom Carnal arrependeu-se de seus exageros e prometeu a um frei confessor que iria buscar contrição de seus pecados. Com a descrição da batalha e do processo de confissão de Dom Carnal, os leitores medievais seriam instruídos sobre os valores e tradições daquele tempo e sobre a correta maneira de iniciar o período quaresmal, momento de reflexão e penitência. Após beberem, comerem e festejarem – ações que se causaram danos aos povos e às terras e levaram ao duelo duas ideias distintas –, os homens daquele tempo poderiam compreender melhor seus erros e buscar a remissão de seus pecados.

Não obstante a lição moral implícita nas rimas do arcipreste de Hita – vale lembrar que são lições próprias e específicas para os homens ibéricos do século 14 –, hoje os valores ocidentais fundados nos costumes cristãos e na racionalidade são comumente colocados em teste entre o carnaval, a Quaresma e o fim da Páscoa. Não que esse seja o único momento ou o mais enfático. Porém, indivíduos e setores da nossa sociedade propõem neste período um mote e um tema a ser digerido durante todo o ano. Entram em confronto, assim como os soldados de Dom Carnal e de Dona Quaresma, os debates acerca da apropriação cultural, dos colapsos sanitários e ambientais, dos gastos do Congresso e dos ex-presidentes, das funções e deveres dos órgãos de defesa, das regras de vestimenta, dos direitos à diversão e de outros temas não tão diversos. Observamos curiosos o confronto e desaprovamos, mesmo que instintivamente, as escolhas que fogem daqueles valores que cultivamos. Colocamo-nos nas janelas e, mais que ver o bloco passar, observamos quem, entre Dona Quaresma e Dom Carnal, ganhará o combate e sairá na frente encabeçando a contrição e as penitências que assumiremos no resto do ano.

Se, no século 14, os exércitos colocados em campo simbolizavam o jejum e a gulodice, hoje, dado o desenrolar da história e as permanências de valores e costumes, vemos artistas, escolas de samba, jornalistas, grupos religiosos, universitários e políticos, disputando quem assumiria o papel de curador de almas e cobraria a penitência. Relembramos os vencedores de anos anteriores e analisamos se serviram de bons ou maus confessores. Analisamos se obtiveram êxito expurgando nossos pecados e erros, ou se somente desfrutaram de um lugar confortável para julgar. Questionamos, por fim e após analisar os combatentes, a capacidade dos possíveis confessores.

Repetindo o conflito castelhano medieval, ainda que de modo simbólico e didático, no mês de fevereiro as cobranças e demandas sociais que virão a ser tendência foram expostas. A “guerra” de propostas, mesmo que continue nos jornais, grupos de WhatsApp e redes sociais, tem como fim colocar o oponente na cadeira do penitente. Assim, quem ganha o conflito durante o carnaval ganha também a possibilidade de pautar os temas e guiar o ato de contrição, enquanto quem perde se submete ao exame de consciência.

Antes de ouvir a confissão e guiar a consciência de Dom Carnal derrotado e arrependido, o frei confessor disse: “Não se faz penitencia por carta nem por escrito, / se não pela boca mesma do pecador contrito: / não se pode por escrito ser absolvido nem quito, / necessária é a palavra do confessor bendito”. Nas rimas, Dona Quaresma vence, Dom Carnal se torna contrito e os povos e as terras desfrutam de um período de paz, jejum e penitência. Hoje, o combate termina sem se ter muito claro o vencedor, mas com a certeza de que um período de contrição aguarda. Cabe aos indivíduos, portanto, escolher, mais do que suas posições no conflito de ideias, os valores que desejam rever ou manter e qual tipo de confessor desejam para guiar-lhes pelo doloroso processo de penitência. Resta aos mais decididos aguardarem e torcerem para que a contrição a ser feita reafirme os valores vencedores do Ocidente e que o confessor não cobre mais do que aceitamos e devemos ser cobrados.

Rodolfo Nogueira da Cruz é doutorando em História e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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