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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

A história da Nova República pode ser facilmente traçada numa linha de sucessivos escândalos de corrupção. Desde o “esquema PC Farias”, passando pelos Anões do Orçamento, as suspeitas sobre os processos de privatizações na era FHC, os mensalões do PT e do PSDB, até o petrolão, a sucessão de crises que expõem políticos poderosos ligados a empresários interessados em benesses estatais parece revelar uma constante do período democrático.

Com mais intensidade nos últimos cinco anos, a opinião pública brasileira se viu assolada pela defesa de certo falso realismo, que passou a apontar a corrupção não só como parte mesma da engrenagem do sistema político nacional, mas como mal inerente à esfera do governo, identificando sua crítica radical como “negação da política”, que viria acompanhada da ameaça de uma suposta ascensão autoritária, nos moldes dos regimes que grassaram em parte do Ocidente durante a primeira metade do século 20. Nesse jogo, as autoridades envolvidas nas investigações foram sucessivamente retratadas sob o signo do puritanismo ou do arrivismo ingênuo, já que não expressariam compromisso com qualquer projeto de mudança total da sociedade.

Não raro, a defesa do falso realismo ocultava compromissos mal disfarçados com partidos e grupos políticos tradicionalmente estabelecidos. Inicialmente, a crítica veio de departamentos universitários e órgãos de mídia nos quais o Partido dos Trabalhadores (PT) se encontrava organicamente enraizado. Conforme outros partidos e personalidades se atolavam no lamaçal comum, acusadores inveterados da corrupção petista foram se convertendo em apóstolos da defesa do “político” contra o suposto clima de devassa que se instaurava no país.

Não raro, a defesa do falso realismo ocultava compromissos mal disfarçados com partidos e grupos políticos tradicionalmente estabelecidos

O fato é que isso não foi o suficiente para abafar o discurso anticorrupção, cada vez mais ligado ao antipetismo, que acabou triunfando nas eleições de 2018. Numa campanha fortemente assentada no trabalho de novos intermediários, que atuaram desde a produção difusa de conteúdos políticos até a atividade militante em grupos frouxamente articulados em torno da candidatura do capitão, Jair Bolsonaro foi capaz de driblar o aparato milionário dos grandes partidos e do marketing eleitoral, derrotando antigas estruturas de mediação e estabelecendo a base de novas estruturas que ainda não foram devidamente compreendidas pelos analistas e protagonistas do jogo político.

A indicação do juiz Sergio Moro para um superministério da Justiça, ao fim do pleito, não só atendeu a demanda do eleitorado por transformações profundas no sistema político brasileiro, mas também sinalizou para a incorporação das tecnologias e da expertise desenvolvida pela Operação Lava Jato, com fortes indícios de que a até então mal sucedida agenda das Dez Medidas possa encontrar, no novo ciclo que ora se inicia, forte aliado no Poder Executivo.

A janela de oportunidades que se abre no primeiro momento do governo é evidente. Contrariamente ao que reza o falso realismo, a ênfase na criação de mecanismos eficazes de combate à corrupção é um passo necessário para a restauração da legitimidade de um Estado cada vez menos capaz de exercer sua autoridade nos diversos âmbitos da sociedade, com impactos diretos nos índices rompantes de criminalidade e violência.

Opinião da Gazeta: Uma nova relação entre governo e partidos (editorial de 16 de dezembro de 2018)

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O assunto é objeto de preocupação de uma tradição cada vez mais forte de estudos nas ciências sociais. Recentemente, dois criminólogos norte-americanos, Amy Nivette e Emanuel Eisner, pesquisando o tema em 65 países, descobriram forte correlação entre a legitimidade do Estado e altos índices de homicídio.

A explicação do fenômeno articula uma série de hipóteses instigantes. Legitimidade se define pela medida em que atos levados a cabo pelo Estado se coadunam não só com a lei, mas também com as normas e valores que lhe dão respaldo. Um Estado incapaz de fazer cumprir sua própria lei é um convite permanente ao delito daqueles sob sua proteção. No nível do sistema de Justiça criminal, por exemplo, a incapacidade de regular conflitos, interromper ciclos de vingança por meio da justa pena e garantir contratos leva a um progressivo descrédito nas instituições, ao qual se seguem o aumento dos conflitos interpessoais e a instituição de grupos de extermínio, milícias, máfias ou outras organizações criminosas capazes de exercer governança nas relações sociais, explorando a venda de proteção privada misturada com extorsão e outros mercados ilegais congêneres.

Porém, a corrupção também é parteira da ocupação irregular do território, da desorganização urbana e do enfraquecimento da eficácia coletiva das vizinhanças e comunidades. Também responde pela ineficiência de escolas na produção do autocontrole em crianças e jovens sujeitos à baixa supervisão parental, em contextos de ampla inserção das mulheres no mercado de trabalho formal e informal, aumento do tempo de deslocamento entre casa e trabalho, crescimento do número de divórcios etc. Sem ela, mesmo essa grande mão de obra disponível jamais se integraria em grupos criminosos articulados, capazes de exercer domínio sobre vastas porções do território e instituições penais.

Leia também: Guerra à polícia (artigo de Diego Pessi, publicado em 16 de dezembro de 2018)

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Combater a corrupção é agenda civilizatória. Trata-se de passo fundamental para recuperação da autoridade do Estado nacional, como instituição protagonista na preservação da ordem no contexto de sociedades que não encontram mais um eixo comum de valores capazes de regular o funcionamento das instituições pela simples adesão interna dos sujeitos.

Obviamente, trata-se de construir o avião quando ele já está voando. O desafio do governo Bolsonaro e do ministro Sergio Moro será aliar essa prioridade com o incremento da repressão qualificada do crime e da violência, a restauração do papel civilizador da pena, o enfrentamento direto do crime organizado e a recuperação da capacidade de instituições como família, escola e vizinhança de exercer o controle necessário do desvio e da delinquência. Não é tarefa fácil, mas tampouco parece haver personagens mais qualificadas para o desafio. O seu sucesso ou fracasso definirá nosso futuro como nação.

Eduardo Matos de Alencar é escritor e sociólogo, doutorando em Sociologia e editor do site Proveitos Desonestos.
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