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A Covid-19 e o “fato do príncipe”
| Foto: Felipe Lima

O artigo 486 da CLT tornou-se objeto de ampla discussão desde que o presidente Jair Bolsonaro sinalizou sua possível aplicação contra estados e municípios que adotarem políticas estritas de isolamento social que resultem no fechamento de postos de trabalho. Tal artigo, com modificações, encontra-se no texto da CLT desde sua promulgação e trata da aplicação da teoria do “fato do príncipe” nas relações trabalhistas. Esta teoria, advinda do Direito Administrativo, encontrou desenvolvimento autônomo no Direito do Trabalho, sendo definida jurisprudencialmente pelo TST nos seguintes termos: “uma variação da força maior, designando uma ordem ou proibição de autoridade pública, com natureza de ato estatal de império, que frustra a execução do contrato de trabalho” (AIRR 1190420185120023).

A força maior (artigo 502 da CLT) corresponde a situações imprevistas, inevitáveis e não imputáveis ao empregador, oriundas de fato da natureza ou ações humanas que inviabilizem suas atividades produtivas e, consequentemente, a manutenção de relações trabalhistas. Enquanto variação da força maior, o fato do príncipe distingue-se desta ao caracterizar-se como ato de império – coercitivo, que não depende da vontade dos administrados para aperfeiçoar-se. Nessa hipótese de força maior, o ente administrativo torna-se responsável pelo pagamento da multa por dispensa sem justa causa.

Atos de império são discricionários quando têm por fundamento a liberdade do administrador quanto à escolha de meios para a persecução do bem comum. Nestas situações, há espaço para responsabilização do poder público em situações que gerem prejuízos a particulares. O posicionamento que, aparentemente, prevalece nesse momento da discussão é o de que decretos de distanciamento social são fruto de atos vinculados – que não gozam da liberdade dos atos discricionários e, por isso, devem ser caracterizados como situações de força maior comuns.

Importante óbice a tal posicionamento advém do fato de que o STF reconheceu a autonomia dos entes federativos na escolha das ferramentas para o enfrentamento da pandemia. Ao tratarmos de situação na qual o gestor tem diversidade de escolhas, reencontramos a definição de ato discricionário, pré-condição para a aplicação da teoria do fato do príncipe nos termos do artigo 486 da CLT. Além disso, a não responsabilização dependeria da imprevisibilidade da situação. A OMS, no entanto, alertou quanto à iminência de uma pandemia de doença-X, nome dado para enfermidades desconhecidas com grande potencial de disseminação. As autoridades, ao deixarem de criar planos de contingência para lidar com a situação, omitiram-se e, em tese, assumiram risco que não pode ser desprezado na esfera judicial.

Nem todos os casos de dispensa imotivada resultarão no reconhecimento do fato do príncipe. A empresa deverá comprovar que encerrou suas atividades por efeito exclusivo do ato de império. Além disso, o ato deverá ser analisado quanto à margem de discricionariedade e adequação das medidas adotadas face às demandas da saúde pública. Apenas no caso concreto será possível verificar a aplicabilidade do artigo 486 da CLT. No entanto, sua incidência é plausível e não deve ser preliminarmente descartada nos debates sobre o tema.

Rafael Pereira de Menezes é bacharel em Direito, mestre e doutor em Filosofia, servidor da Justiça Eleitoral e professor de Legislação Trabalhista, Ética e Filosofia no Centro Universitário Campos de Andrade.

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