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A corrupção está tão disseminada em nosso cotidiano que virou uma instituição cultural. É como a propina para se fazer “vistas grossas” e “facilitar o andamento do caso”. Nossa sociedade aprendeu a conviver com essa anomalia, não sem a tensão e a revolta dos mais esclarecidos, que sabem perfeitamente que todo atraso, carestia e desordem econômica a tem como causa primária. Dizer que a corrupção é uma cultura entre nós pode chocar algumas pessoas, cuja primeira opinião é a de se tratar de desvio de caráter. Naturalmente, o caráter é uma variável nessa questão, pois a cobiça do ganho fácil é algo humano e aqueles que têm uma educação mais frouxa não hesitarão em prevaricar se as condições lhes forem favoráveis.

A índole da cada um pode ser regrada por educação e leis, pois para isso existe a sociedade, e do seu bom desempenho depende a observação de certas regras de conduta individual, social e de trabalho. A transgressão existirá sempre, mas numa sociedade bem regulada isso se reduz a uma baixa prevalência. O eficiente uso da fiscalização e da supervisão, junto a uma legislação adequada, corrige a maior parte deste problema. No Brasil, há uma dissonância cognitiva que leva à confusão entre autoridade e autoritarismo, um vício nacional herdado do escravagismo e do coronelismo de aldeia, com práticas que redundam um comportamento antissocial e, por vezes, criminoso, de detentores de poderes econômicos e de posses.

Não basta a educação se também não se forma, em nossas escolas, consciências éticas e verdadeiramente republicanas

Ora, se a corrupção é endêmica em nosso país, a causa não está no caráter, mas no afrouxamento de todas as instituições na observância da lei, moralidade e ética. Em outras palavras, em uma cultura institucionalizada do “molhar a mão do guarda” somos levados ao que denominamos de cegueira ética, uma doença crônica social que altera a percepção e o julgamento da maioria das pessoas. A pressão disso é nefasta e torna a corrupção algo natural, aceitável. De todos esses fatores resulta uma dissonância cognitiva que distorce a consciência para noções como moralidade e ética. A autoridade se relativiza, afrouxando o rigor com que regras e leis devem ser seguidas, e a cegueira ética se instala. Essa atonia moral leva ao fenômeno da vitimização, para o qual nossa sociedade é especialmente vulnerável.

Em contrapartida, as personalidades antissociais são resistentes a sentir remorso. Além disso, não admitem culpa e têm todos os seus problemas com a Justiça ou seu grupo projetados nos outros. Eis que muitos são culpados pelos seus crimes – como, por exemplo, a “sociedade injusta” que o criou, seus pais que o reprimiram e as maquinações políticas contra ele. Na política brasileira, isso é bem conhecido. Em vez de um mea culpa liberador, vemos nossos políticos não admitirem seus erros, culpando adversários políticos e se autoimolando como membros de uma minoria perseguida – aliás, não raro violenta. A corrupção na política é uma cultura arraigada no espírito nacional e um grande incentivo à desvirtuação em todos os níveis. A corrupção generalizada torna todos cúmplices e, assim, o crime se instala sem que o remorso e a culpa criem obstáculos. Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica, já observava que, quando um crime é cometido em nome de um grupo que o incentiva ou de uma ideologia ou fé que o absolve, o indivíduo não se sentirá culpado.

A corrupção extrapola, em muito, a prevalência de personalidades antissociais. Isso porque muitas pessoas com este tipo de comportamento entre nós, especialmente criminosas, não são antissociais do ponto de vista psiquiátrico, mas sim por pressão cultural do meio em que vivem. Em psiquiatria, denominamos de fenocópias de personalidades antissociais quando as pessoas adquirem essa forma de comportamento por serem pressionadas culturalmente, e não por constituição. Esta situação vem crescendo assustadoramente entre os jovens, que serão nossos futuros comerciantes, funcionários, dirigentes, políticos e, sobretudo, eleitores. Não basta a educação se também não se forma, em nossas escolas, consciências éticas e verdadeiramente republicanas. Algo precisa ser feito.

Antônio Geraldo da Silva, psiquiatra, é presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Fernando Portela Câmara, psiquiatra, é membro da ABP.
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