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A cultura do cancelamento e a sociedade do medo
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Muito se fala atualmente a respeito do “cancelamento” de alguém na internet. Tal ação consiste na represália pública, coordenada e massiva de uma pessoa – seja ela famosa ou não – que tenha “se portado mal” nas redes por um determinado motivo.

O que acontece é que, como é de se esperar e geralmente acontece, em nome da busca de um suposto bem abstrato, cometem-se injustiças claras, concretas e irreparáveis.

Um dos casos mais recentes gira em torno de Emmanuel Cafferty, americano de 47 anos que foi demitido após ser exposto por um perfil no Twitter. Cafferty voltava para sua casa após uma jornada de trabalho quando, de dentro de sua caminhonete, colocou seu braço esquerdo para fora do veículo realizando um movimento de alongamento dos dedos. Um homem desconhecido que passava pela rua xingou-o e fotografou-o, interpretando seu gesto manual como um ato de apologia à supremacia branca.

Não satisfeito com o xingamento, este mesmo homem publicou no Twitter a foto tirada em que aparecia também o símbolo da empresa de Cafferty, mencionando-a em uma condenação expressa do gesto de seu funcionário. Poucas horas depois, Cafferty, pai de três filhas, estava desempregado e tinha seu nome associado ao racismo na internet.

O caso deste americano é apenas mais um evento do atual fenômeno dos cancelamentos orquestrados pelos justiceiros sociais. As represálias por escrito já não são suficientes. Querem agora pressionar os empregadores para que o “cancelado” perca o emprego e seja de tal modo humilhado e julgado a ponto de – em casos como o de Cafferty – ter de recorrer a terapias para se recuperar dos ataques sofridos.

Quem conhece o Twitter sabe bem que esta é uma rede com uma presença maciça de jovens engajados politicamente que defendem ostensivamente o cânone do progressismo liberal moderno. Esta rede, que limita as postagens a apenas 280 caracteres, contribui voluntária ou involuntariamente para a superficialidade na abordagem de temas complexos. Uma parte considerável de seus usuários acredita poder resolver todos os problemas do mundo com notas de repúdio ou petições para que empresas e patrocinadores deixem de pagar ou financiar um determinado alvo.

Desse modo, o exercício de estruturar logicamente as ideias através da elaboração de textos com início, meio e fim, cai cada vez mais em desuso. Se antes o Orkut, com todas as suas limitações estéticas, permitia debates livres e extensos em fóruns de grupos específicos sobre determinado tópico, o Twitter, por sua vez, é a indústria do “repeteco” que privilegia os toptrends, frases curtas que são republicadas pelo maior número de usuários da rede.

Não convém listar aqui a enorme lista de famosos “cancelados” nos últimos anos. De Jordan Peterson e J. K. Rowling, no mundo anglófono, a Gabriela Pugliesi, na terra brasilis, a realidade é a mesma: o atual mundo moderno da “tolerância” não dá margem a erros. O perdão e o aprendizado são hábitos do passado que deram lugar à destruição pública de reputações em nome de uma justiça seletiva e sem critério.

O filósofo grego Sócrates, nos diálogos platônicos, afirmava não ser moral cometer o mal em nome de um suposto bem. Este pensamento pode ser igualmente encontrado na milenar teologia moral cristã e foi incorporado ao pensamento ocidental de modo geral. No entanto, tal herança civilizacional se encontra novamente em xeque nas democracias liberais.

É de amplo conhecimento que a justificação dos meios pelos fins é um elemento do pensamento revolucionário presente nas principais revoluções do mundo moderno, a saber, a francesa e a russa. Assim como em nome dos valores republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade, a horda de gauleses desenfreados chegou a guilhotinar – entre religiosos, camponeses monarquistas e outros grupos considerados culpados – mais de 18 mil pessoas; a russa, no auge do stalinismo, deportou mais de 3 milhões de pessoas para a Sibéria e demais repúblicas centro-asiáticas.

Ainda que não haja comparação direta entre as consequências capitais das grandes revoluções dos últimos séculos e as encolerizadas ações dos jovens justiceiros da internet, destaca-se um ponto em comum entre ambos os fenômenos: o fomento ao medo coletivo na sociedade.

O coagido não é mais o camponês apoiador do ancien régime ou o pequeno proprietário de terras russo contrário à coletivização forçada de suas posses, mas sim pessoas comuns que ocupam postos de trabalhos comuns e que provavelmente têm seu norte teórico-moral guiado pelo senso comum. Com a ascensão de movimentos fomentadores da cultura do cancelamento, como o Sleeping Giants, a tendência é que os novos alvos não se limitem a celebridades, passando a englobar também pessoas sem nenhuma notoriedade pública cujos empregadores – ameaçados com a diminuição de sua receita pela associação em massa do “cancelado” ao nome da empresa – preferem demitir determinados funcionários a comprometerem sua imagem pública. O trade off das empresas entre serem associadas à “ação inconveniente” do funcionário cancelado e arcar com os custos de uma demissão é sem dúvidas favorável a esta última opção.

Destarte, muitas pessoas criam inconscientemente uma barreira à expressão de suas convicções pessoais, religiosas ou políticas com medo de caírem no ostracismo social. Ideias professadas abertamente décadas atrás se tornaram sensíveis e censuradas por jornalistas militantes e pelas massas eloquentes do Twitter, dando solidez ao fenômeno batizado pela cientista-política alemã Elisabeth Noelle-Neumann como “espiral do silêncio”.

Por outro lado, esse tipo de coação tem suas limitações. Não foi à toa que a eleição de Donald Trump em 2016 tenha surpreendido quase todos os institutos de pesquisa e veículos de comunicação norte-americanos. Os eleitores de Trump, receosos de serem identificados a tudo o que a oposição lhes imputava, compuseram assim a maioria silenciosa (the silent majority, no original em inglês) que elegeu o republicano.

É necessário o fim da cultura do cancelamento para evitar a ascensão de uma sociedade na qual um grupo de poucos iluminados engajados com as causas do momento tenha a legitimidade para falar em nome de uma massa de acuados. Se os famosos que foram um dia vítima das hordas virtuais puderam reerguer sua imagem e suas finanças, tal sorte não é assegurada a pessoas comuns como Cafferty cujo sustento familial depende do salário do mês. É hora de assumir que a sociedade plural com a qual tanto se sonhou traz como umas de suas consequências o fardo cada dia mais pesado – acreditem se quiser – de poder ser contrariado intelectualmente.

Lucas Carvalho, bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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