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Por que o debate de ideias se transformou num festival de mesquinharia intelectual?

Passado o calor da campanha, é preciso lamentar: nossa elite letrada se mostrou de um conservadorismo gritante ao longo de todo o período de eleição presidencial encerrado no último domingo. Foi uma visão sectária de democracia a que, infelizmente, levamos às urnas no segundo turno. Não admira que, de parte a parte, só se ouvissem acusações – como se disputassem a Presidência, de um lado, sindicalistas bárbaros, de outro, senhores feudais do século 21. Com dois candidatos tão qualificados – intelectualmente, em particular – não era para ser assim.

Por óbvio, não pretendo aqui explorar, como se já não tivéssemos tido o suficiente, as atitudes de grotesca baixaria ou simples oportunismo populista a que se entregaram ambas as campanhas. Não falo do militante ferrenho, do tipo torcedor de arquibancada, que não estava a fim de qualquer reflexão. Minha decepção tem como alvo os candidatos que foram ao segundo turno e seus apoiadores intelectuais, aqueles que poderiam opinar e propor no que diz respeito a projetos possíveis de nação. E digo opinar e propor de forma abrangente: dispondo, como tribuna, de um espaço nos meios de comunicação ou de uma reunião de diretoria em grande empresa; de uma assembleia de classe ou estudantil ou da audiência jovem de uma sala de aula universitária. Isso é fazer política no melhor sentido.

Restou, ao contrário, esse incômodo: por que será que o debate de ideias que deveria ser uma eleição presidencial acabou por se transformar num festival de conservadorismo, quando não de mesquinharia intelectual?

Preferimos acusações a propostas; preferimos a recusa a conversar à negociação e ao combate inteligente. De novo: foi uma eleição de um sectarismo absurdo – de ambas as partes, e sem que nenhuma das duas parecesse se dar conta do mal que fazia: progressistas históricos querendo manter tudo como está – inclusive os defeitos – e conservadores históricos falando em, supostamente, melhorar "isso que está aí", o que se mostrou insuficiente para apagar seu conservadorismo de raiz, se era o que pretendiam (e, se era, é uma pena, pois a tradição do pensamento político conservador não merecia tal simplificação). No fim, todos se mostraram os piores conservadores – porque, como disse, sectários.

O leitor dirá que sonho alto, que a ambição do poder, sempre ela, jamais permitiria agir de outro modo em campanha.

Isso até pode valer para os políticos profissionais. Mas a passagem que mais me marcou nessa eleição não envolve políticos ou a militância partidária, tampouco os dois candidatos – figuras públicas respeitáveis, cujas posturas e biografias os afastam daquele profissionalismo sempre deletério em política. Curiosamente, me aconteceu de ouvir, no intervalo de poucos dias, exatamente a mesma frase – palavra por palavra – de um eleitor letrado de cada lado. A uma pergunta minha sobre a possibilidade, já então descartada, de um governo de Marina Silva, reagiram: "A Marina? E quanto tempo você acha que duraria um governo dela?".

Tem algo de muito errado nessa história. Vinte milhões votaram na candidata verde no primeiro turno. Causa espanto, no mínimo, que se ache normal uma democracia moderna – ainda que jovem, como a brasileira – estar sujeita a esse tipo de virada de mesa. Fico com o que escreveu o jornalista Marcelo Leite: transparece aí certo medo do processo democrático, além da pura e simples desqualificação do voto alheio – de vinte milhões! – como "fraco" ou "ingênuo".

Descartando-se a hipótese absurda de que Marina, eleita, pudesse ser derrubada, os dois lados restantes no segundo turno deveriam também, por simples honestidade intelectual, ter evitado o discurso do retrocesso em caso de vitória adversária: nunca esteve em jogo, convenhamos, um retorno ao Brasil de oito ou dezesseis anos atrás.

Christian Schwartz é jornalista tradutor e professor da Universidade Positivo.

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