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Vacinação.
Vacinação.| Foto: Jonathan Campos / AEN

O político e diplomata prussiano Otto von Bismarck, em certa ocasião, disse que a política é a arte do possível. Esta frase cada vez se torna mais atual, em razão dos últimos acontecimentos na política brasileira. Ao refletir sobre esta ideia, Peter Sloterdijk, em seu livro No Mesmo Barco – ensaio sobre a hiperpolítica, asseverou de forma atualíssima: “Consequentemente, como arte real, a política estaria no cume de uma pirâmide de racionalidade, que estabelece uma relação hierárquica entre razão de Estado e razão privada, entre sabedoria principesca e interesses de grupos, entre adultos políticos e crianças políticas”.

É por este prisma que não se pode entender a racionalidade na recusa do Brasil em apoiar a Índia e África do Sul, dois parceiros do Brasil nos Brics, em seu pleito de quebrar as patentes das vacinas contra a Covid-19 na Organização Mundial do Comércio (OMC), enquanto toda a população mundial não estiver imunizada e a pandemia controlada. Aliás, ressalte-se que o Brasil foi o único país em desenvolvimento contrário à proposta feita na OMC pelos dois países em outubro de 2020.

Não vou me concentrar aqui na estupidez de não apoiar este pleito de grande importância para os países em desenvolvimento, dentre eles o próprio Brasil. Basta-me remeter o leitor mais uma vez à contundente frase de Sloterdijk, que dá o embasamento teórico para afirmar a irracionalidade em 1. não apoiar o pleito devido ao alinhamento automático e sem reciprocidade do Brasil com os Estados Unidos (ou, deveria dizer, subserviência a Donald Trump); 2. desconsiderar o fato de que Índia e África do Sul são parceiros estratégicos do Brasil nos Brics; 3. esquecer que o Brasil é referência no tratamento da Aids por conta da coragem da quebra de patentes dos medicamentos; e o mais importante: 4. as centenas de milhares de vidas ceifadas pela Covid-19 em razão da omissão do Estado brasileiro, neste ponto representado pelo seu ideológico (agora ex-)ministro das Relações Exteriores.

O apoio à quebra de patentes das vacinas em apoio ao pleito da Índia e da África do Sul retorna à pauta nacional logo após a queda do antigo chanceler (não acredito que a esta altura a queda de Ernesto Araújo e a posse do novo ministro, por si sós, sejam indicativos de mudança, levando-se em consideração que o grande artífice da política externa do país é o presidente da República), oportunidade em que o Congresso Nacional, pelas suas comissões de Relações Exteriores, adotaram a quebra como um dos caminhos possíveis para conter as mortes sem sentido de brasileiros.

Ao defender a quebra das patentes das vacinas para a Covid-19, não estou me insurgindo contra as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, mas reconhecendo que, dentre as obrigações assumidas no pertinente à proteção de patentes, os acordos internacionais comportam exceções, o que seria o caso da pandemia. Ademais, ao apoiar o pedido formulado por Índia e África do Sul ante a OMC, demonstraria a minha defesa do multilateralismo como a forma mais eficaz de combate à pandemia.

O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (sigla em inglês Trips), ratificado pelo Brasil no Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994, é um tratado internacional que faz parte dos acordos concluídos na Rodada Uruguai, em 1994, oportunidade em que a OMC foi criada. O Trips traz em seu bojo uma série de normas jurídicas que visam regular a proteção intelectual dos países-membros. Na sua essência, o Trips tem a preocupação de “reduzir distorções e obstáculos ao comércio internacional e levando em consideração a necessidade de promover uma proteção eficaz e adequada dos direitos de propriedade intelectual”. Mas pergunta-se: no caso de pandemia, este objetivo pode subsistir?

Em seu artigo 31, o Trips estabelece o “Outro Uso sem Autorização do Titular”, ou seja, a possibilidade de utilização da patente sem a autorização de seu proprietário. O dispositivo leva em consideração a possibilidade de que a legislação interna de algum país-membro do Trips possa prever a utilização da patente sem autorização, incluindo o uso pelo governo daquele país. Parte da norma jurídica estabelecida no artigo 31 assevera: “Quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes disposições serão respeitadas: a) a autorização desse uso será considerada com base no seu mérito individual; b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial [...]” (destaque nosso).

O artigo 31, se interpretado sistematicamente com outros acordos internacionais firmados pelo Brasil, especialmente aqueles que tratam dos direitos humanos, autorizaria o Brasil, diante da pandemia, a aprovar lei determinando a quebra emergencial das patentes e sua utilização sem autorização. Não é o que queremos! Ao defender o mérito e a legalidade de sua adoção no âmbito da OMC pela via do apoio à proposta feita pela Índia e África do Sul, estamos defendendo o cumprimento do direito internacional e a prevalência do multilateralismo para o enfrentamento da pandemia.

Se no próprio Trips não houvesse a exceção ao direito de propriedade intelectual, valeria ainda o próprio Jus Cogens, ou seja, normas imperativas de Direito Internacional que instam os Estados a proteger os valores mais caros na comunidade internacional, dentre eles aqueles que a pandemia atinge em cheio: a vida e paz.

Douglas de Castro é advogado e diretor do Núcleo de Estudos Avançados em Direito e Política Internacional da Ambra University.

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