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 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

O século 20, por razões concretas, foi pródigo em distopias, aqueles sistemas filosóficos que contrariam frontalmente a Síndrome de Poliana. Não haveria mesmo motivo para otimismo depois dos horrores de duas guerras mundiais, da matança de curdos, do holocausto dos judeus, dos assassinatos massivos de Stalin e Mao, de epidemias globais, de crises econômicas devastadoras, das bombas nucleares, das ditaduras boçais do terceiro mundo. Dentre os movimentos culturais podem-se destacar a Geração Perdida, os existencialistas, os beatniks, os punks e muitos outros; todos destacando-se pela descrença no “sistema”, no futuro (No future!), em qualquer possibilidade de salvação para a humanidade, como se poupar saúde ou vida fosse um roubo ao direito de “viver como se não houvesse amanhã”, num mundo em que talvez não houvesse mesmo.

Mas o amanhã chega, muitas vezes trazendo conta exorbitante pelo desinteresse passado. Neste momento estamos vivendo um desses pontos que merecem reflexão: a possibilidade de perda da maior parte de uma das mais importantes Áreas de Preservação Ambiental (APAs) estaduais, dado que está em discussão na Assembleia Legislativa do Paraná o futuro da Escarpa Devoniana. Esta área tem quase 400 mil hectares, distribuídos em 13 municípios da faixa dos Campos Gerais, um dos ecossistemas mais ameaçados do país, com capões de araucária, afloramentos de rocha, variadas espécies de mamíferos, aves, répteis e peixes; além de grande importância histórica, cultural e arqueológica, por ter sido parte da Rota dos Tropeiros e abrigado muitos povos indígenas. O projeto em curso propõe reduzi-la em dois terços ou, eufemisticamente, “relativizar” sua proteção ambiental.

Os Campos Gerais são um dos ecossistemas mais ameaçados do país

O relevo da maior parte dessa área dificulta a agricultura mecanizada, motivo pelo qual as atividades econômicas no local limitaram-se, até há pouco tempo, à pecuária extensiva, que não prejudica de modo significativo o meio ambiente. A valorização da soja no mercado externo ocasionou uma corrida às áreas mecanizáveis para plantio e também reflorestamentos com espécies alienígenas como o pínus, seguida de implantação de agroindústrias e indústrias de beneficiamento de madeira.

É inegável o benefício imediato de pagamento de impostos e geração de empregos que essas atividades geram para os municípios, mas o custo futuro é alto demais. A perda de florestas e espécies nativas tende a ser irreparável, como pode ser constatado em todo o Paraná, que destruiu grande parte de sua cobertura vegetal de araucárias e Mata Atlântica, um grande débito para a nossa geração e maior ainda para as gerações futuras.

Fala-se que, à parte as meritórias intenções de melhorar a realidade econômica dos municípios, existem projetos de mineração e implantação de parques de energia eólica. Mineração em área de preservação ambiental é, ou deveria ser, um anátema; basta lembrar, com certo exagero, a tragédia causada pelo derrame de lama da barragem de Fundão, em Minas Gerais, ainda não totalmente indenizada às vítimas, segundo se sabe.

Leia também:A Escarpa Devoniana e a fraqueza de um governo aliciado (artigo de Clovis Borges, publicado em 5 de janeiro de 2017)

Leia também:Critérios factíveis para a APA da Escarpa (artigo de Ágide Meneguette, publicado em 14 de março de 2017)

Parques eólicos constituem uma bela forma de gerar energia “limpa”; mas a serpente deste paraíso surge na necessidade de grandes espaços abertos, excesso de ruídos e perigo de choque das aves locais com as pás, causando até alterações fatais em rotas de migração, o que merece um estudo ponderado e aprofundado. Se é verdade que nenhum homem é uma ilha, também é verdadeiro que nenhuma espécie o é; temos compromisso e obrigação com nosso planeta inteiro e com a sua sobrevivência.

A despreocupação compulsiva com o futuro compromete de modo talvez irremediável o que deixaremos para nossos descendentes. É desnecessário comentar a criminosa irresponsabilidade de boa parte da nossa classe política em temas que não digam respeito unicamente a seus interesses e sua reeleição. Mas não podemos nos eximir de questões muito mais sérias, que são responsabilidade de todos nós, e que não podem ser deixadas na conta do “amanhã”.

Wanda Camargo, educadora, é assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.
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