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| Foto: Rogério Machado/Gazeta do Povo

As grandes empresas de rádio e televisão são detentoras de concessões públicas para a exploração da comunicação. Para poderem atuar, elas recebem uma autorização do Estado para atender aos interesses públicos por meio da exploração de tais serviços (artigo 21, da CF/88), portanto, suas regulamentações trazem obrigações para com a sociedade.

A fiscalização da coisa pública no Brasil é muito precária e repleta de irregularidades. No caso das empresas de mídia – traumatizados que somos pela censura – criou-se um “animal estranho”, o Conselho Nacional de Auto-regulamentação publicitária (Conar), para exercer essa fiscalização. Trata-se de uma entidade privada sem fins lucrativos que não tem nada haver com o poder judiciário.

Mas quem escolhe os conselheiros do Conar? Estranhamente, são na sua maioria, as próprias entidades que dependem dos gastos publicitários. A maior parte das vagas para o Conselho de Ética do Conar vem de indicações de entidades fundadoras do conselho ou associadas a ele. Parece haver, portanto, um desequilíbrio de forças entre os interesses dessas entidades e os da sociedade civil. Desequilíbrio esse que pode deixar escapar algumas pérolas publicitárias de qualidade duvidosa.

A maior parte das vagas para o Conselho de Ética do Conar vem de indicações de entidades fundadoras do conselho ou associadas a ele

Campanhas massivas e nacionais, como a “Agro é Tudo”, são parte desse rol de publicidade ruim. Caríssimas, elas representam um exemplo de tentativa de manipulação da opinião pública em prol de um setor que, em tempos de crise, posiciona-se arrogantemente como “salvador da pátria”. Vamos aos fatos.

Segundo uma das propagandas, o “agronegócio brasileiro emprega 19 milhões de pessoas”, o que representaria “20% do total de empregos no país”. Acontece que quem mais emprega no campo é a agricultura familiar, com 11,5 milhões de trabalhadores. Manipulam-se, portanto, os números para demonstrar que o agronegócio é o grande gerador de empregos.

Aliás, em tempos de grave crise econômica, deveríamos olhar para alternativas de geração de renda ao invés de aumentar nossa dependência de poucos grandes clientes globais, como a China. Assim fez a Espanha, por exemplo, que entendeu há muito tempo que agro não é tudo. Em 2017, os espanhóis faturaram 68 bilhões de dólares com a indústria do turismo. As exportações de soja brasileira por outro lado, totalizaram apenas US$ 38 bilhões, no mesmo período. Incrível, não é mesmo?

É preciso lembrar que a “elite ruralista” concentra mais da metade das terras do país, além de contar com enormes benefícios fiscais como perdões de multas ambientais e dívidas milionárias pelo governo. Esta bancada – que hoje divide com os evangélicos a hegemonia no Congresso Nacional – vem ganhando ainda mais força e poder político.

Leia também: Perspectivas do agronegócio brasileiro para 2019 (artigos de Carlos Araúz Filho e Gabriel Placha, publicado em 20 de dezembro de 2018)

Leia também: É preciso mudar a imagem do agronegócio (artigo de Eduardo Müller Saboia, publicado em 25 de junho de 2018)

Na verdade, o que se viu na sequência de comerciais – entre um comercial de produto aqui e um dado setorial ali – foi um grande esforço conjunto do agronegócio no Brasil para melhorar sua imagem e aumentar ainda mais seu poder de influência. As campanhas publicitárias começaram a ganhar força nas gestões Dilma e Temer, envolvidas em vários escândalos. Muitos deles ainda em apuração.

Dentre os escândalos, um deles envolve o próprio ex-ministro da agricultura, Blairo Maggi, um dos maiores plantadores de soja do mundo. Denunciado pela Procuradoria Geral da República por corrupção ativa, o ex-ministro também já foi investigado por crimes ambientais. Ter colocado Maggi na agricultura foi como colocar a “raposa cuidando do galinheiro”, mas, no Brasil, infelizmente, os políticos parecem não saber o que significam conflitos de interesses.

Outro escândalo, ainda mais grave foi o envolvimento de boa parte dos parlamentares brasileiros com a gigante do agronegócio JBS, grande “doadora” da chapa Dilma/Temer. Em mais de uma ocasião, dada a gravidade das delações, o governo anterior quase veio abaixo, mas foi salvo pela bancada ruralista e aliados. A JBS responde por inúmeras irregularidades trabalhistas, tributárias e ambientais. Além de ser protagonista em um dos maiores esquemas de corrupção da história do Brasil, quiçá, do mundo.

Não faltavam, portanto, motivos aos senhores do agronegócio para tentarem melhorar a imagem institucional do setor a qualquer custo. Esta melhoria de imagem, e o crescente poder de influência política, também pode tê-los ajudado na autorização recente da entrada de muitos novos agrotóxicos no mercado nacional. Mesmo aqueles proibidos em outros países.

Leia também: Agronegócio: O meio ambiente como o melhor negócio (artigo de Armando Luiz Rovai, publicado em 16 de janeiro de 2019)

Leia também: O desafio da educação para o agronegócio (artigo de Eduardo Müller Saboia, publicado em 25 de abril de 2018)

Voltando a questão da comunicação, cabe aqui um questionamento ético sobre o conteúdo de algumas peças publicitárias envolvendo o agronegócio. De forma polêmica, a GM/Chevrolet, propagandeou recentemente uma caminhonete, nas palavras do jornalista André Trigueiro, “utilizando um discurso raivoso e beligerante de lideranças do agronegócio contra ambientalistas”. O texto do comercial, de tão agressivo, deveria abalar o prestígio da montadora e da agência de propaganda que assina o comercial.

Uma denúncia sobre essa propaganda foi levada ao Conar, exigindo que o caso fosse analisado por uma comissão interna. A bancada, formada na maioria por pessoas ligadas a empresas de mídia e publicidade, no entanto, não viu problema algum na peça publicitária da GM. Mas basta assistir uma vez ao comercial para entender que o conselho errou de maneira grosseira. A propaganda, claramente, fomenta a discórdia e a animosidade.

Em seu livro Homo Deus, Yuval Harari nos conta que a agricultura foi o começo do fim para muitos. Com ela, vieram ondas de extinção em massa e a propriedade privada e seus conflitos que, segundo ele, produziram a maior parte das guerras da humanidade. A reflexão de Harari pode ampliar nossa perspectiva, através de um olhar científico e filosófico sobre o verdadeiro significado do que é o agro e quais deveriam ser os seus limites.

Não se trata aqui de fazer apologia a ideologias anticapitalistas. Precisamos, sim, do agronegócio. É necessário produzir e, é claro, vender. Mas o setor publicitário (e o Conar) não podem ultrapassar os limites da ética ou fomentar o ódio, principalmente, entre setores que deveriam ser interligados e interdependentes entre si, como o da agricultura e da defesa do meio ambiente.

Giem Guimaraes é diretor-executivo do Observatório de Justiça e Conservação (OJC).
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