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Na semana passada, novamente, o mundo tremeu com a divulgação de mais uma dessas pesquisas científicas inesperadas. O pesquisador chinês He Jiankui anunciou que havia utilizado a técnica Crispr-Cas9 para modificar o material genético de embriões, com a intenção de criar uma mutação que os protegesse da infecção pelo vírus HIV e, consequentemente, da Aids. Segundo He, duas crianças gêmeas (com pseudônimos Nana e Lulu) já teriam nascido como fruto deste procedimento, e testes genéticos nessas crianças teriam demonstrado que tais modificações genéticas realmente ocorreram.

A comunidade científica “entrou em parafuso” por vários motivos. Há, na comunidade científica internacional, um consenso de que a modificação de material genético de embriões a serem implantados não poderia ser realizada sem que houvesse avanços nos quesitos de segurança e eficácia – e apenas se e quando houvesse um amplo consenso da sociedade de que tal tecnologia poderia ser usada de forma adequada. Mas a técnica Crispr-Cas9, um dos avanços mais promissores da ciência no sentido de curar doenças genéticas, ainda carece de maior desenvolvimento técnico para passar da etapa de investigação científica para aplicação clínica. O maior desafio científico atual é desenvolver metodologias para que a técnica Crispr-Cas9 não possa modificar o genoma humano em locais não intencionais, não programados e de forma não detectável, o que traria consequências imprevisíveis para os pacientes, seus descendentes e, em um aspecto mais amplo, para toda a espécie humana.

A inaceitável falha ética de He Jiankui trará efeitos perversos não somente para a sua carreira, mas para a universidade na qual realizou a pesquisa

Além disso, há fortes indícios de que nem os sete casais participantes da própria pesquisa foram corretamente informados em detalhe dos meios que seriam utilizados por He para atingir seu objetivo. Como se tudo isso já não fosse suficientemente assustador, o objetivo final de He – evitar que filhos de pais com HIV se infectassem – poderia ser atingido com outras alternativas já disponíveis na medicina, mais seguras, eficazes e éticas do que o método utilizado.

Existem cerca de 8 mil doenças genéticas sem cura. Como corrigir um erro genético presente em cada uma das 37 trilhões de células do nosso corpo? Há pelo menos meio século, os cientistas se debruçam sobre pesquisas que um dia levem a um método seguro, eficaz e eticamente aceitável para transpor esta enorme barreira científica. Já não bastassem os enormes obstáculos científicos, de tempo em tempo um ou outro pesquisador se aproveita dessas barreiras para ficar mundialmente famoso, insinuando que a transpôs, mesmo sem levar em conta um ou mais dos três princípios básicos e intransponíveis de toda pesquisa científica séria: segurança, eficácia e ética.

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A inaceitável falha ética de He Jiankui trará efeitos perversos não somente para a sua carreira, mas para a universidade na qual realizou a pesquisa – e também para a própria pesquisa chinesa. Certamente haverá um dano para os avanços das pesquisas com a promissora técnica de Crispr-Cas9, e até para os pacientes soropositivos que foram estigmatizados com este experimento. Neste triste episódio da pesquisa inadvertida de He Jiankui, todos perderam. Mas a perda maior foi daqueles que contam os dias para que surjam curas para as doenças genéticas.

Salmo Raskin é médico geneticista, diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika e professor e pesquisador da Universidade Positivo.
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