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A atual conjuntura política e econômica do país exige atenção. Os poderes da República dialogam a custos altos. A regra da democracia representativa moderna passou a ser a desconfiança e não a confiança. É nesse cenário que, a pretexto de resolver o problema do mau funcionamento da coisa pública, apresentam-se soluções equivocadas.

Após o parecer do TCU pela rejeição das contas da presidente Dilma Rousseff referentes a 2014, em seu mandato anterior, intensificou-se o debate em torno da (im)possibilidade de impeachment. A questão é: há essa possibilidade jurídica? Quando se está diante de um ambiente político conflituoso e confuso, a única saída racional deve ser a dada pela Constituição.

Não há possibilidade constitucional responsabilização por fatos alheios ao mandato em curso

Do vício à virtude

O pedido de impeachment encabeçado por Hélio Bicudo já continha todos os elementos para o justo afastamento da presidente da República: os fatos estão claramente demonstrados, os crimes firmemente delineados e todos os requisitos formais preenchidos.

Leia o artigo de Janaina Conceição Paschial, professora de Direito Penal e coautora do pedido de impeachment também assinado por Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr.

O impeachment, instituto constitucionalmente previsto para ser usado diante de crime de responsabilidade do chefe do Executivo, é medida extrema que deve ser encarada com o máximo rigor e nos estritos limites lançados pelo constituinte, pois, tendo em vista que a procedência do impedimento leva à perda do mandato, restará relativizada a preservação da vontade popular.

Para responder à pergunta colocada, há de se verificar a regra prevista na Constituição de 1988. O artigo que disciplina essa questão estabelece, textualmente, que o presidente da República tão somente pode ser responsabilizado por atos que ocorram na vigência de seu mandato (art. 86, § 4.º). Ora, se indiscutível que as irregularidades apontadas derivam do mandato anterior, tem-se que o requisito elementar para a abertura de impeachment está ausente – o que impossibilita seu processamento durante o mandato atual.

Há quem argumente que, uma vez presente o instituto da reeleição, o mandato subsequente seria a continuação do primeiro e, havendo a prática de crime de responsabilidade neste, tornar-se-ia possível a responsabilização do mandatário reeleito no seu segundo período. Contudo, esse entendimento é incompatível com o sentido da Constituição. Mesmo após a inserção do instituto da reeleição pela Emenda Constitucional 16/97, a parte que trata dos crimes cometidos pelo presidente da República não foi modificada. Portanto, ainda que seja possível exercer por duas vezes consecutivas o mandato presidencial, a Constituição deixou de considerar essa peculiaridade no tocante à responsabilização do presidente da República por crime de responsabilidade. A Constituição – repise-se – estabelece como requisito para tal responsabilização a necessidade de o crime ter sido praticado na vigência do mandato. Nesse sentido, muito bem colocou Lenio Streck ao afirmar que, “quando o texto não diz o que queremos, não podemos lhe dar o sentido que queremos. Ao contrário: se queremos dizer algo sobre um texto, diz Gadamer, deixemos, primeiro, que ele nos diga alguma coisa”.

Ademais, insofismável que o mandato derivado da reeleição não é, juridicamente, continuação do primeiro. Para que o presidente concorra à reeleição, deve haver novamente sua aprovação em convenção partidária, novo registro de candidatura na Justiça Eleitoral, submissão a outra eleição e, por óbvio, uma nova posse. Assim, dúvidas não há de que o mandato subsequente é autônomo e distinto do primeiro.

Destarte, mesmo que – em tese – possa ter havido crime de responsabilidade pela presidente da República no mandato anterior, não há, à luz do sistema constitucional pátrio, possibilidade de ocorrer a sua responsabilização por fatos alheios ao mandato em curso.

Deixo clara a minha defesa da manutenção da vontade democrática consagrada nas urnas. Se em 2014 o eleitor – no exercício de autêntica accountability política – optou por reeleger a atual presidente, o ideal é que a soberania popular seja respeitada. Isso significa o respeito às regras do jogo, que é o preço a pagar por se viver em um Estado de Direito.

Ana Carolina de Camargo Clève, mestranda em Ciência Política, é professora de Direito Constitucional e Eleitoral da UniBrasil.
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