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| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Em setembro, em várias regiões do Brasil, floresce o ipê, uma árvore de flores grandes e vistosas que embelezam as matas e cerrados, praças e ruas das cidades. Os galhos sem folhas contrastam com as inflorescências densas, nas quais milhares de flores se espremem para expor a beleza de seus estames e estigmas e, assim, atrair aves, abelhas, borboletas e outros insetos polinizadores que auxiliarão a produzir as sementes que serão dispersas pelo vento em alguns meses. É impossível não notar essa florada que desperta interesse e curiosidade em muita gente.

O botânico americano Alwyn Gentry foi um dos primeiros cientistas a estudar as plantas tropicais da família das bignoniáceas e suas interessantes estratégias para sinalizar aos animais a presença de néctar e pólen. Ele observou que uma florada colorida, massiva e curta atrai uma gama grande de animais que aprenderam, ao longo da evolução, que a visita a uma árvore chamativa como esta é a certeza de encontrar alimento.

Nas mais de 20 espécies de ipê que ocorrem no Brasil, as flores são amarelas, brancas, roxas e rosadas e, cada uma ao seu tempo, disputam a atenção dos polinizadores. O zum-zum dos animais é especialmente evidente nas plantas que estão nas suas áreas naturais – ou seja, nas matas dos parques e demais áreas protegidas –, mas pode ainda ser ouvido nas árvores usadas na arborização de inúmeras cidades brasileiras.

Por ser bem marcada temporalmente, é comum que a florada do ipê estimule nas pessoas um espírito observador

Por ser bem marcada temporalmente, é comum que a florada do ipê estimule nas pessoas um espírito observador, o mesmo que moveu o botânico Gentry a começar a associar os períodos de florada com suas próprias atividades do dia a dia. Lembrar “o que eu estava fazendo na florada do ano passado?” ou “será que a florada está acontecendo sempre na mesma época?” são indagações comuns de um bom observador da natureza e do mundo que o cerca.

Uma associação recorrente envolve a observação de que o clima tem se tornado cada vez mais quente, as chuvas vêm seguindo ritmos imprevisíveis – de tempestades torrenciais a secas severas – e a natureza supostamente está se adaptando a essas mudanças. A ciência tem mostrado milhares de evidências de alterações nos ritmos de plantas e animais devido às anomalias climáticas. E por que não pensar que, seguindo este ritmo alucinante de emissões de carbono na atmosfera e de elevações de temperaturas que a Terra está sofrendo, o próprio ipê poderá modificar sua florada, adiantando, atrasando ou mesmo dessincronizando seu relógio biológico... será, então, que no futuro teremos uma florada descompassada?

É triste pensar que o homem seja capaz de descaracterizar um ritmo que a história evolutiva das plantas moldou ao longo de milhões de anos. No entanto, essa pegada gigante que o homem moderno está deixando no planeta, especialmente nos últimos 100 anos, leva a crer que perderemos ainda muito mais das espécies e das suas relações ecológicas.

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Enquanto a florada do ipê não muda de forma mais perceptível, temos a chance de observá-la e admirá-la. Somos milhões de pessoas que, ao mesmo tempo, observamos, fotografamos e publicamos as flores da estação. Os mecanismos evolutivos que levaram as plantas a florescerem massivamente foram determinados pelos polinizadores e pelo clima, não pelo homem. No entanto, a conexão entre indivíduos da espécie humana devido a um bem oferecido pela natureza – no caso, a beleza das flores – é algo recente e real e que nos faz refletir sobre o passado e o futuro de nossa espécie.

A natureza é – e sempre foi – capaz de criar laços estreitos entre nós, pois dependemos dela para sobreviver. Seja na produção de água para o nosso consumo, na renovação do ar atmosférico, na reciclagem do solo que utilizamos na agricultura, na polinização de espécies alimentícias ou no bem-estar promovido pela contemplação da natureza, não é possível o homem existir sem as áreas naturais. A natureza promove uma “rede social secreta” de pessoas que se sentem humanas e pertencentes a um mesmo planeta. Se dermos maior valor a essas conexões únicas, seremos capazes em pensar num futuro sustentável e possível.

Marcia C. M. Marques é ecóloga, professora da UFPR e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.
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