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 | Albari Rosa/Gazeta do Povo
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Há alguns anos, quando ainda havia três adolescentes nesta casa, uma vez eu me entusiasmei durante o jantar e comecei a falar sem parar sobre o brilhantismo de um livro escrito por uma autora irlandesa que estava lendo. “Não acredito que nunca foi para lá. Você gosta tanto dessas coisas, não creio que ainda não conhece a Inglaterra e a Irlanda”, comentou um dos meus filhos. “É, mas é caro. Primeiro eu não tinha dinheiro, depois vieram vocês, que precisam mais de sapato do que eu de conhecer a Irlanda. Um dia, quem sabe”, disse.

Cético, o garoto não se satisfez com a resposta. “Antes de entrar na faculdade, o papai fez a Europa de bicicleta, sozinho, em nove meses. Você poderia ter feito o mesmo se realmente quisesse.” E é verdade: meu marido trabalhou para comprar a bicicleta com que viajou pela Europa, aos 19 anos. Sozinho.

Ensinei meus filhos a se levantar quando entrasse um adulto no recinto. A olhar as pessoas nos olhos e estender a mão quando forem apresentados. A colocar o guardanapo no colo, não falar de boca cheia, a defender alguém que estiver sofrendo bullying. O que não lhes ensinei, e só pensei nisso naquele momento, foi como viver a vida sendo mulher – e os cálculos mentais necessários para estacionar o carro, pegar um elevador ou mesmo fazer uma caminhada na floresta. “É perigoso para uma mulher acampar sozinha. Tem as que se arriscam, mas eu não sou tão corajosa”, finalmente disse à mesa naquela noite.

Meus filhos cresceram ouvindo as histórias das aventuras do pai, mas nenhuma minha. Nunca contei do “amigo” da família, um garoto de 16 anos que uma vez ficou comigo quando os pais dele e os meus saíram para jantar quando eu tinha 11 – e como ele ficou me seguindo pelo apartamento, mexendo na minha blusa, puxando o elástico da minha calça e insistindo para que eu a tirasse até que não aguentei e me tranquei no quarto para só sair de lá quando meus pais voltaram.

Ensinei meus filhos sobre muita coisa, mas não sobre como é viver a vida sendo mulher

Nunca contei da vez em que acompanhei uma amiga à loja de ferragens da cidade, quando nós duas tínhamos 14 anos – nem que ela usou o dinheiro que ganhara como babá para comprar uma chave de fenda e uma trava para manter o irmão mais velho afastado do seu quarto à noite.

Nunca contei do meu primeiro emprego, em que comecei quando acabara de completar 16 anos – nem de como o gerente corpulento ficava inventando desculpas para ir à despensa toda vez que eu estava na fritadeira, como ele se espremia entre mim e o balcão, esfregando a virilha suada no meu traseiro a cada investida.

Nunca contei nada da época da faculdade – nem da vez em que tive de ligar para a polícia por causa do sujeito escondido na moita em frente de casa. Ou do professor que me disse que meu casamento próximo poria um fim “às preliminares mais longas” a que já se dedicara. O que eu achava ser um interesse avuncular na minha carreira, para ele não passava de um ato de sedução não consumado.

Não há nada incomum nessas histórias. Elas fazem parte das experiências diárias de praticamente toda mulher que conheço, ainda que raramente compartilhadas. Nunca haverá um movimento poderoso nas redes sociais que comece com “Hoje tomei café da manhã”, ou “Hoje meu cachorro fez cocô e eu tive de limpar” ou “Hoje lavei o cabelo com o mesmo xampu que uso desde 2006”. Contamos histórias que, de alguma forma, são interessantes, surpreendentes, inesperadas. O cotidiano não dá um bom enredo.

Leia também: É uma caça às bruxas, sim; eu sou a bruxa e vou caçá-lo (artigo de Lindy West, publicado em 19 de outubro de 2017)

Talvez por isso a avalanche de histórias que invadiu o Twitter e o Facebook por esses dias seja tão poderosa. Começou em 5 de outubro, quando o New York Times publicou a primeira acusação de assédio sexual contra o produtor de Hollywood Harvey Weinstein, mas já tinha virado um monstro 10 dias depois, quando a atriz Alyssa Milano tuitou: “Se você já foi assediada ou agredida sexualmente, responda este tuíte com um #MeToo [#EuTambém]”. Em questão de minutos a hashtag #MeToo já tinha tomado conta da rede: foram 500 mil respostas no Twitter e 12 milhões no Facebook só nas primeiras 24 horas – e a enxurrada não dá sinais de diminuir. Os números só fazem crescer com as mulheres contando as histórias de homens que usaram o poder para subjugá-las ou coagi-las.

Não conheço uma única que se surpreenda com essas histórias ou com os números estratosféricos. Só os homens. Alguns – cerca de 300 mil – estão escrevendo para contar que também foram vítimas de assédio, já que a violência e o abuso do poder obviamente não são uma questão de gênero ou orientação. Outros criaram hashtags próprias: #IHearYou (“#EstouTeOuvindo”). São homens, como meus filhos, que nunca souberam desses relatos antes porque, durante muito tempo, as mulheres acharam que não eram válidos. Ou porque quase sempre não eram levadas a sério.

Leia também:A violência contra a mulher e o silêncio da sociedade (artigo de Sandra Barwinski, publicado em 27 de janeiro de 2013)

Vale a pena mencionar a ironia do fato de o livro do qual estava falando para os meninos ao jantar naquela noite ser Quarto, de Emma Donoghue, sobre uma mulher sequestrada do câmpus universitário e mantida como escrava sexual em um galpão de quintal. Mesmo lendo aquela história tão bonita, tão comovente, não me ocorrera confessar todas as vezes que quis sair para acampar, caminhar ou viajar e não pude porque não encontrei quem fosse comigo e não tinha coragem de ir sozinha.

Temos coisas mais importantes com que nos preocupar neste país do que saber se produtores de Hollywood são predadores sexuais – e é bem provável que o movimento morra daqui a um tempo, da mesma forma que aconteceu quando foram reveladas as denúncias contra Bill Cosby, Roger Ailes e Bill O’Reilly. De fato, o primeiro “Me Too” foi iniciado há dez anos pela ativista negra Tarana Burke – e, no entanto, cá estamos nós de novo.

Esse tipo de ativismo inevitavelmente sai do ciclo de notícias quando uma guerra nuclear deixa de ser apenas uma hipótese remota, quando o aquecimento global deixa de ser apenas uma ameaça remota, quando refugiados desesperados em risco de vida deixam de ser só mais uma preocupação, quando a capacidade da mulher de tomar decisões em relação ao próprio corpo passa a ser ameaçada, quando milhões de norte-americanos sem assistência médica deixam de ser apenas uma hipótese. A lista de perigos reais e imediatos que enfrentamos hoje só cresce – mas vale notar que a maioria deles pode ser atribuída diretamente a um homem que se gaba de poder violar qualquer mulher que deseje e ainda não sofreu nenhuma consequência por isso.

Margaret Renkl é articulista do jornal “The New York Times”.
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