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| Foto: Amy Sussman/REX/Shutterstock

Em 2015, Aretha Franklin convidou a mim e algumas outras pessoas a acompanhá-la à Filadélfia, onde cantaria para o papa Francisco. Claro que fiquei empolgado com a possibilidade de ver o pontífice de perto – mas devo confessar que, mesmo depois de tantos anos de amizade, ainda ficava animado ao ver a Rainha do Soul. Mesmo com 73 anos, Franklin tinha o dom de soltar faíscas pela boca e incendiar a Terra.

Só a menção do nome de Aretha Franklin bastava para invocar uma fúria sônica transcendental, que ela encarnava com muita honestidade. Seu pai, o reverendo C.L. Franklin, foi um dos pregadores mais importantes de sua época. Sua habilidade retórica foi preservada em dezenas de gravações, guardadas em muitos lares negros como um verdadeiro tesouro.

Eu fui criado em Detroit, onde os Franklin moravam, mas a primeira vez que ouvi as palavras do ministro foi na fazenda do meu avô, no Alabama. Tinha 6 anos e fiquei ali sentado, hipnotizado pelo disco. C.L. Franklin era um pregador simples, cujos sermões mostravam sua paixão prática e pé no chão, que acabava com qualquer sussurro dramático. Era mestre do sermão cantado, nos quais as palavras estão postas sob a pressão da música e o discurso se transformava em canção.

A jovem Aretha aprendeu tudo com o pai e se transformou em prodígio gospel.

Alguns fiéis acharam que Aretha traíra seu primeiro amor e verdadeira vocação – mas erraram feio

Se Aretha herdou o talento do pai, eu aprendi a amar Aretha por causa da minha mãe. Quando ela saiu do Alabama rumo a Detroit, em meados dos anos 50, frequentava a Nova Igreja Batista Bethel, onde C.L. Franklin fazia sermões todo domingo. E me contou como, depois que Franklin hipnotizava a congregação com sua homilia poética, a filha adolescente se levantava atrás dele para acirrar os ânimos. E sua categoria era tão absurda e tão estimulante que a congregação simplesmente sabia que a grandeza e o Espírito Santo se encarnavam em dobro naquela jovem destemida. É possível ouvir seu dom inegável em sua primeira gravação gospel, aos 14 anos, Never Grow Old.

Quando chegou a hora de trocar o sagrado pelo secular, e galgar as paradas da música soul depois de ter trilhado brilhantemente o caminho da alma na música gospel, Aretha enfrentou uma reação brutal por parte de alguns fiéis. Eles acharam que ela traíra seu primeiro amor e verdadeira vocação – mas erraram feio. Depois de flertar com vários gêneros, do blues ao jazz, Aretha Franklin encontrou uma tela maior para fazer caber sua visão artística, resultado de paixões antigas da alma e possibilidades morais progressistas. Assim, transformou a incisiva Respect, de Otis Redding, em um hino atemporal do orgulho racial e brado de reconhecimento feminista. Sua igreja ficou maior, a congregação composta de milhões de pessoas em busca de uma visão profunda do caminho espiritual além das portas do templo.

Quando voltou ao mundo gospel, em 1972, e novamente 15 anos depois, a forma como usou as frases e a emoção do santuário acalmou aqueles que temiam que, de alguma forma, ela tivesse se perdido ou que Deus tivesse se esquecido dela. Seu pai fez questão de que o mundo soubesse, com comentários incisivos sobre o álbum Amazing Grace, que sua filha “nunca realmente deixara a igreja”. E claro estava que a igreja nunca a tinha abandonado.

Durante uma carreira impressionante, Franklin fez questão de abordar sua preocupação com a justiça social e as políticas redentoras – tanto que se apresentava nos eventos de arrecadação de fundos pelos direitos civis de Martin Luther King, nos anos 60, e como endosso à luta de Jesse Jackson. Ofereceu-se para pagar a fiança para a revolucionária Angela Davis no início dos anos 70, indo inclusive contra a vontade do pai. Em declaração na época, a ativista disse: “Fui detida [por perturbar a ordem em Detroit] e só sei que é exatamente isso que se tem de fazer quando não se tem paz”.

Paulo Cruz:  Cara gente preta (28 de junho de 2018)

Leia também: Música como elemento de identidade (artigo de André Egg, publicado em 2 de fevereiro de 2011)

Usando um chapéu espetacular, Franklin cantou My Country ‘Tis of Thee na primeira posse de Barack Obama, em 2009.

Eu tive a sorte de conhecê-la pessoalmente e, às vezes, ela me ligava para discutir os eventos atuais. Tinha uma compreensão cristalina das maquinações políticas da nossa época, mas se orgulhava das conquistas do primeiro presidente negro, lamentando profundamente a polarização no governo de seu sucessor.

Tinha um senso de humor afiado. Eu ria muito toda vez que ela contava o encontro de King, convidado para ir à casa de seu pai, com a empregada, que lhe deu as opções para o café da manhã. “Temos ovos mexidos, canjiquinha e proteína de soja (soychig)”, enumerou ela. Achando que a oferta fora feita em uma pronúncia peculiar de “linguiça” (sausage), King, sem pestanejar, disse que aceitaria os ovos, a canjiquinha “e um pouco de soychig”. Nós dois ríamos de chorar.

Eu tinha um interesse pessoal muito grande pela oratória de seu pai. De tanto acompanhar seu trabalho e estudar sua habilidade, Franklin acabou me convidando para subir ao palco em Atlanta, em 2012, para falar do meu apreço pelo talento formidável que ele tinha na oratória. Ela tinha muito orgulho da forma como seu pai conduzia o discurso sacro negro, e ficava especialmente grata pelo fato de a geração mais nova se aperceber de seus talentos.

Aretha Franklin fez questão de abordar sua preocupação com a justiça social e as políticas redentoras

Quando estávamos nós dois ali naquele palco, percebemos, e comentamos depois, que tínhamos percorrido um longo caminho desde Detroit. Ambos amávamos a cidade que, por sua vez, se mostrava excessivamente orgulhosa de nós. Ela foi uma evangelista destemida por uma cidade quase sempre criticada por assumir sem pudor nenhum sua identidade e liderança negras.

A igreja batista da qual nós dois nos originamos acabou revelando uma grande consideração por seu reinado como a força mais dominante da música norte-americana. O pastor em mim acreditava que não havia jeito melhor de contar nossa história a um mundo que talvez nunca escurecesse as portas de uma igreja, mas precisava desesperadamente de uma dose do Espírito Santo.

O medo de voar de Aretha Franklin era famoso – mas agora, como suas composições, ela ascendeu ao reino dos céus, no qual acreditava apaixonadamente e para o qual sua arte imortal, tanto na igreja como além dela, sempre apontaram.

Michael Eric Dyson é pastor batista e autor de “What Truth Sounds Like: Robert F. Kennedy, James Baldwin and Our Unfinished Conversation About Race in America”.
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