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O país inteiro se pergunta como, a despeito da crise generalizada, a situação do estado do Rio de Janeiro pode ter chegado ao ponto extremo a que chegou e que justificou a primeira intervenção federal formal desde 1966. Trata-se de um dramático quadro de falência fiscal, com salários de servidores três meses atrasados; de falência política, encontrando-se a cúpula da elite política que dominou o estado nos últimos 20 anos atrás das grades, a título de corrupção; falência na segurança pública, ocasionada pelo repique da violência urbana ocasionada pelo fracasso no combate ao tráfico de drogas. Como um estado de belezas exuberantes e abundância de petróleo se atolou de tal maneira depois de sediar os primeiros Jogos Olímpicos na América do Sul? Por que o estado do Rio parece assim, tão diferente, e se governa tão mal?

A sensação de que o Rio é uma anomalia não é gratuita. A região tem singularidades que explicam seu estado de crônico desfuncionamento. Desde a década de 1950, nenhuma outra cidade atravessou tantas mudanças políticas, sociais e econômicas provocadas por decisões federais unilaterais. O atual município do Rio foi capital do Brasil desde dom João VI até Juscelino Kubitschek. Foi Corte desde 1808 e Distrito Federal desde 1889. Era sede das embaixadas, dos ministérios, das autarquias, das fundações e dos três poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em praças no centro da cidade. O Rio era o palco da República de 1946, marcada por partidos como o PTB, da esquerda trabalhista; a UDN, partido liberal das classes médias; e o PSD, partido conservador das oligarquias rurais. Nele residiam e atuavam seus líderes mais expressivos, como Getúlio Vargas, João Goulart, Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek – a maioria, em Copacabana. O antigo estado do Rio tinha por capital Niterói e nada tinha a ver com a cidade homônima desde 1834. Enquanto o Distrito Federal sediava a cidade mais populosa, desenvolvida e cosmopolita do Brasil, o antigo estado estava estagnado desde a abolição da escravatura. Cariocas e fluminenses tinham identidades políticas diferentes.

Esvaziar o Rio fazia parte de um projeto mais amplo de desmantelar os “excessos” da democracia inaugurada em 1946

O drama atual do Rio de Janeiro começou na década de 1950. Como as demais capitais latino-americanas, a exemplo de Buenos Aires e Santiago, a capital vinha sofrendo os efeitos políticos da industrialização e da urbanização, que traziam consigo a irrupção das massas na cena política. A capital era, então, palco de grande tensão política, contestação social, golpes e contragolpes, o mais dramático do qual havia resultado no suicídio de Vargas no Palácio do Catete. Juscelino Kubitschek, próximo presidente eleito, não era popular no Rio, temia sua população e concluiu que, eleitoralmente, lhe convinha mudar a capital para o interior, para longe da multidão, onde não houvesse povo nem sociedade civil, operários ou estudantes, mas apenas fazendas e funcionários públicos. O governo federal transferiu oficialmente a capital para um canteiro de obras no meio do mato e transformou o Rio em uma cidade-estado, a Guanabara, sem indenizá-la em um níquel que fosse. Entretanto, como Brasília ainda não tinha condições de funcionar como capital, na Guanabara continuaram os ministérios, as embaixadas, as autarquias, os principais jornais e todos os políticos. Ou seja, continuou capital na prática. O presidente da República despachava do Palácio das Laranjeiras. As lideranças civis só ficavam no planalto central de terça a quinta e continuavam a se encontrar no resto do tempo nas antigas sedes cariocas do Senado e na Câmara.

No governo João Goulart começou a se disseminar a sensação de que Brasília era um elefante branco e que convinha retornar a capital formalmente para o Rio. O regime militar, porém, estava interessado no projeto do Centro- Oeste, que isolaria o governo das pressões da população e das contestações à ditadura, e retomou o projeto de Brasília. Esvaziar o Rio fazia parte de um projeto mais amplo de desmantelar os “excessos” da democracia inaugurada em 1946, que passava por reprimir os movimentos sociais, cassar as principais lideranças do país e dissolver seus grandes partidos. O primeiro presidente a governar efetivamente de Brasília foi justamente o general Médici, no auge da ditadura.

Mas, sendo o único estado governado pela oposição e o tambor político do país, a Guanabara continuava a ser uma pedra no sapato do regime e os militares passaram a estudar um meio de “descapitalizar” ou “provincianizar” a antiga capital. Surgiu daí a decisão da dupla Geisel e Golbery de fundir a Guanabara com o antigo estado do Rio de Janeiro, medida aprovada por um Congresso castrado, sem consultar a população e sob os protestos da oposição. Assim nasceu o atual estado do Rio, como um ajuntamento desastrado de comunidades que tinham vivido sempre apartadas e sem coesão política. Mais uma vez, não houve indenização por parte da União. Os teóricos do regime imaginavam que o novo estado seria um portento capaz de competir com São Paulo pela liderança na federação. Aconteceu o contrário. A participação da região no PIB fluminense caiu um terço depois de dez anos. Em vez de o interior sustentar a capital, foi a capital que passou a sustentar o interior pobre. Enquanto órgãos federais continuaram a ser transferidos para Brasília, a degradação progressiva do ambiente urbano da antiga capital brasileira, causada pelo desgoverno, começou a afugentar para São Paulo centenas de empresas e bancos; a capital paulista foi se tornando também o epicentro político-social do país e da qual sairiam os dois partidos que organizariam a Nova República: o PT e o PSDB. Em 1990, o Rio de Janeiro já não era mais o centro político e financeiro do Brasil e sua Bolsa de Valores foi fechada.

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Estado anômalo inventado pela ditadura, o “novo estado do Rio” sempre funcionou pessimamente. Arruinou Niterói, abandonou o interior e criou um município do Rio impotente, caracterizando-se por uma incrível confusão de competências entre União, estado e município. Nele, a União quase tão onipresente como em Brasília, funcionando sua capital estadual como um distrito federal disfarçado, que até hoje tem mais servidores federais que estaduais. Permanece latente a oposição entre capital e interior, isto é, a antiga Guanabara e o antigo estado do Rio. Seus governadores se valem do cargo ou como plataforma oposicionista à Presidência da República, ou de modo submisso, como os antigos prefeitos nomeados do distrito federal. Sua classe política não luta pelos interesses estaduais, preocupada apenas com temas nacionais ou em obter vantagens pessoais. Por incrível que pareça, a aliança entre Cabral e Picciani foi o único experimento harmonioso entre capital e interior no estado, que lhe rendeu o melhor e pior governo que o novo estado do Rio já teve. Não poderia haver demonstração mais patente do fracasso do experimento institucional feito pela ditadura – único estado da história brasileira que surgiu de uma fusão e não de um desmembramento territorial.

Como se percebe, o atual estado tem uma história muito peculiar, que ajuda a explicar o seu colapso e crônico desfuncionamento, e suas diferenças em relação aos demais estados da federação. Explica também sua primazia na decretação de uma intervenção federal formal e por que cariocas e fluminenses, em vez de humilhados por ela, recebem o retorno da autoridade federal de braços abertos, como um filho abandonado pelo pai. Resta saber se a intervenção federal bastará para colocar a região nos trilhos, ou se, na verdade, não seria preciso levar toda essa história em conta e adotar outra configuração político-institucional para a região específica da cidade e da Baixada Fluminense.

Christian Edward Cyril Lynch é professor de Pensamento Político Brasileiro na Uerj e diretor do Instituto Brasileiro de História do Direito.
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