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Arrecadação federal
A categoria marcou uma assembleia para esta quinta-feira (23). Sindicato prevê paralisação total das atividades dos auditores da Receita.| Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado

Há uma reivindicação antiga dos auditores e analistas fiscais da Secretaria da Receita Federal do Brasil sobre a regulamentação da MP 765/2016 (convertida na Lei 13.464/2017), no que concerne ao pagamento do “bônus de eficiência e produtividade na atividade tributária e aduaneira”, cujo objetivo seria incrementar a produtividade nas áreas de atuação dos ocupantes dos cargos de auditor-fiscal e analista tributário da Receita Federal do Brasil. Pela falta de regulamentação legal, desde 2017 o valor do citado bônus é fixo; portanto, não considera as variações decorrentes do cumprimento de metas e desempenho dos referidos servidores.

Com a aprovação do Orçamento de 2022 promovendo cortes de gastos do setor para suprir aumento de outros setores do funcionalismo público, gerou-se um movimento de protesto entre centenas de auditores-fiscais distribuídos pelo país. Além da falta de regulamentação para que o referido bônus seja creditado em valores variáveis de acordo com o desempenho e cumprimento de metas e dos cortes orçamentários para a área, o movimento reclama também da falta de previsão para abertura de novos concursos públicos e a implantação de plano de gestão sobre o teletrabalho durante a pandemia.

Neste cenário, a partir de 15 de dezembro de 2021 iniciou-se uma crescente onda de pedidos de exoneração de funções de cargos de chefia e cargos de comissão, bem como dos cargos de conselheiros junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). De acordo com as informações mais recentes divulgadas pelo Sindifisco, em 23 de dezembro de 2021 o número de renúncias ultrapassou a casa de 700.

As consequências desta mobilização para o país são muitas e profundamente danosas. É preciso entender que a organização administrativa do Ministério da Economia (que engloba a pasta do antigo Ministério da Fazenda) é hierarquizada e, obviamente, as renúncias em apreço provocam uma acefalia em vários setores importantes da Secretaria da Receita Federal do Brasil e do Carf, e o processo de reposição de tais vagas é complexo e demorado. Por conseguinte, enquanto pende a reposição das baixas, há a possibilidade de ocorrer um sensível comprometimento no andamento normal dos trabalhos em curso em ambos os órgãos.

Iniciando pela análise do número de renúncias na SRFB (em torno de 30% dos cargos de chefia e em comissão), observa-se que há um número expressivo de cargos vagos nos setores aduaneiro e de fiscalização. É verdade que tais auditores-fiscais são concursados e, portanto, a renúncia não implica redução do número global de servidores da SRFB, mas a nomeação de outros auditores-fiscais para suprir estas lacunas envolve novas escolhas por parte da Secretaria da Receita Federal do Brasil e as nomeações se dão mediante processos demorados e burocráticos. Deve ser considerada, ainda, a necessidade de adaptação das novas lideranças ao ritmo dos trabalhos iniciados pelos antigos ocupantes dos cargos e funções objeto de renúncia.

Portanto, esta onda de pedidos de exoneração, no curto prazo, tem o potencial de provocar uma paralisia em diversos setores encarregados de processos de fiscalização e arrecadação de tributos federais, inclusive aqueles relacionados ao comércio exterior, comprometendo a celeridade e os excelentes índices de produção do órgão fazendário apresentados nos últimos anos, além de gerar, claro, problemas para os contribuintes que precisam de atendimento junto à SRFB, principalmente nos setores e nas regiões fiscais em que o número de renúncias foi maior.

No Carf os problemas são igualmente graves. O Carf é um órgão colegiado, que deve ser composto pelo número máximo de 180 conselheiros (atualmente, sem contar com as renúncias, o órgão conta com 164 conselheiros), sendo que 50% das vagas devem ser ocupadas por representantes indicados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e outros 50% por representantes indicados pelos contribuintes. O Carf tem uma organização judicante relativamente complexa em Seções e Câmaras de Julgamento, bem como diversas Turmas (Ordinárias e Extraordinárias) e a Câmara Superior de Recursos Fiscais; mas, em resumo, sua atribuição é julgar recursos tanto da Fazenda (recursos de ofício) quanto dos contribuintes (recursos voluntários) de decisões de primeira instância (DRJs) e recursos especiais (endereçados à CSRF) sobre a aplicação da legislação relativa a tributos administrados pela SRFB.

De acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Sindifisco, 44 conselheiros fazendários renunciaram, o que pode implicar comprometimento do quórum de julgamento de diversos processos pendentes (já que sem a representação paritária nos órgãos judicantes do Carf não há como se promover os julgamentos) ou, ainda, atrasar o julgamento dos processos sob a relatoria dos conselheiros renunciantes. E o processo de reposição das vagas tende a ser moroso: em um regime de normalidade, quando vence o mandato ou um conselheiro pede exoneração, é necessária a formação de uma lista tríplice, da qual o ministro da Economia e da Fazenda escolhe um dos candidatos. Ocorre que a “gestação” desta lista tríplice é demorada, pois os candidatos deverão ser previamente avaliados e selecionados pelo Comitê de Acompanhamento, Avaliação e Seleção de Conselheiros do Carf. Este comitê também é um órgão colegiado e os candidatos devem apresentar currículos e ser entrevistados pelos representantes deste comitê. Somente após a aprovação do comitê é que é formada a lista tríplice submetida ao ministro da Economia, para posterior nomeação e publicação da nomeação no Diário Oficial da União.

No cenário atual, cogite-se que de um corpo de auditores-fiscais já bastante insatisfeito, um número significativo deles deverá se voluntariar e se candidatar para ocupar uma vaga no Carf como representantes da Fazenda. Passada a fase acima descrita, caso não seja possível a convocação de suplentes, somente após a nomeação estes novos conselheiros assumirão os processos pendentes sob a relatoria dos antigos conselheiros. Então, partindo-se da premissa de que normalmente os processos de natureza tributária são volumosos e complexos, processos que já estavam “maduros” para julgamento terão de ser retirados de pauta para serem reanalisados pelos suplentes (se for possível) ou pelos novos conselheiros, para somente então serem pautados novamente para julgamento.

É preciso observar que em janeiro de 2022 estavam previstos julgamentos importantes, envolvendo valores expressivos para os cofres federais. Esta paralisia no Carf (e, por consequência, na CSRF) é no mínimo lamentável e comprometedora para a cobrança eficiente dos valores envolvidos. Por outro lado, um ponto que também merece atenção é que os trabalhos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) também serão atingidos pelo movimento dos auditores-fiscais, por conta da dependência que a PGFN apresenta em relação ao resultado dos trabalhos daqueles. Será um verdadeiro efeito dominó.

Depois de vencida a fase administrativa de fiscalização e autuação, não havendo impugnação do contribuinte o processo é encaminhado para a PGFN, para inscrição em dívida ativa e cobrança amigável, ou seja, para que o devedor pague voluntariamente a dívida em 30 dias. Se não houver o pagamento, a cobrança da dívida poderá ser judicial ou extrajudicial (nesta última hipótese, a depender do valor, mediante protesto da Certidão de Dívida Ativa).

Como dito, boa parte das renúncias dos cargos está localizada em setores de fiscalização e arrecadação; então, deve ser ponderado que as renúncias certamente afetarão o curso normal deste trâmite entre SRFB e PGFN. No entanto, o problema maior ocorrerá nos processos em que há impugnação do contribuinte, pois os mesmos são julgados em primeira instância pelas Delegacias de Julgamento (DRJs), formadas por até sete auditores-fiscais, e depois em fase recursal pelo Carf – em alguns casos, mediante recurso especial endereçado para Câmara Superior de Recursos Fiscais. Estes processos, a depender da complexidade, normalmente demoram para apreciação e somente após trânsito em julgado é que os mesmos irão para a PGFN para a cobrança amigável e, depois, para a exigência pela via judicial ou extrajudicial, como esclarecido acima.

Então, deve ser considerado que um processo administrativo que ordinariamente já demora para ser julgado no Carf/CSRF terá o seu curso ainda mais retardado pela renúncia dos conselheiros fazendários. Por ora, não é objetivamente possível determinar o quanto estes processos demorarão para serem finalizados e encaminhados à PGFN para a cobrança. E o tempo é algo que conta muito na eficiência da cobrança de dívidas tributárias. Não é incomum que já no próprio curso do processo administrativo o contribuinte entre, pelos mais variados motivos, em processo de insolvência. Então, quanto mais célere é o processo administrativo fiscal – que depende fundamentalmente da eficiência e rapidez dos auditores e analistas fiscais envolvidos –, mais rápido a PGFN pode atuar para a cobrança judicial ou extrajudicial; portanto, quanto mais moroso o processo administrativo (ou mesmo a própria execução fiscal), menor é a probabilidade de recuperação do crédito.

Execuções fiscais provocam uma taxa de congestionamento gigantesco no Poder Judiciário, chegando a assombrosos 93% na Justiça Federal.

Apesar de o CNJ registrar números recordes de recuperação de dívidas federais em 2020 (números gerais de R$ 31,9 bilhões – diz-se “gerais” porque neste valor estão incluídas tanto as dívidas de natureza tributária como as de natureza não tributária), é preciso observar que há uma taxa muito grande de insucesso nas execuções fiscais federais de dívidas de natureza tributária por conta da demora e da insolvência dos devedores entre o processo administrativo fiscal e o resultado final da execução fiscal. As execuções fiscais provocam uma taxa de congestionamento gigantesco no Poder Judiciário, chegando a assombrosos 93% na Justiça Federal, segundo relatório do CNJ 2021/2020; assim, é inimaginável o quanto este movimento dos auditores-fiscais poderá afetar o desempenho da PGFN.

Em resumo, no cenário atual a lacuna deixada pela saída de auditores-fiscais de postos-chave de diversos setores da SRFB e do Carf, somada à possibilidade de um movimento grevista geral do órgão (cogitado recentemente pelo Sindifisco), sem dúvida alguma provocará um verdadeiro ataque cardíaco na fiscalização, arrecadação e cobrança de tributos federais, agravando imponderavelmente a crise fiscal que assola o país. Espera-se que ocorra uma rápida e conjunta atuação do Ministério da Economia, da Secretaria da Receita Federal do Brasil e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para administrar os possíveis danos do movimento em desfavor dos interesses dos contribuintes e da União federal.

Cláudia Maria Borges Costa Pinto é advogada, doutora em Direito e professora de Direito Tributário nos cursos de graduação e pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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