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Que a “placa” do meio ambiente, alheia a qualquer conjuntura política, seja o desejo genuíno e urgente de preservação, restauração, respeito e responsabilidade, sem o qual inexistirão condições sadias para o bem mais precioso que é a vida
Que a “placa” do meio ambiente, alheia a qualquer conjuntura política, seja o desejo genuíno e urgente de preservação, restauração, respeito e responsabilidade, sem o qual inexistirão condições sadias para o bem mais precioso que é a vida| Foto: Pixabay

As obras de Machado de Assis são atemporais e contêm pontos de reflexão que se perpetuam no tempo e se ajustam a conjunturas sociais e políticas de diferentes épocas no Brasil. Contemporâneo de um período marcado por intensas transformações estruturais no país, envolvendo desde a abolição da escravatura até a proclamação da República, o renomado escritor fluminense retrata parte destes acontecimentos em sua penúltima e célebre obra, Esaú e Jacó.

No prestigiado romance, Machado de Assis apresenta, sob a ótica do personagem Conselheiro Aires, uma narrativa da história dos irmãos Pedro e Paulo. Detentores de personalidades e posições políticas absolutamente antagônicas, os irmãos nutriam um pelo outro um ódio irreconciliável. Paulo, liberal, arrojado, advogado e apoiador da república; Pedro, conservador, retraído, médico e defensor da monarquia. Ao longo da obra, o autor discorre sobre os embates envolvendo os irmãos e lança olhares sobre o Brasil daquela época. Eram tempos de tensões sociais e políticas e a perspectiva da irrupção de um novo regime político desencadeava fortes paixões na sociedade e nos protagonistas.

Imerso no ensaio desse cativante contexto político, o romance apresenta um curioso enredo periférico, mas revestido de peculiar fineza crítica: a tabuleta da confeitaria do Custódio. Em meio às agitações que precediam a proclamação da República, conta a história que Custódio se encontrou em um impasse em relação à placa do seu estabelecimento comercial. Por anos este teve o nome de “Confeitaria do Império” e, enquanto aguardava um pintor revitalizar o letreiro, eclodiu a revolução e a mudança do regime político. Temendo, então, desagradar as frentes políticas da época, buscou orientação com o Conselheiro Aires se deveria mudar o nome para “Confeitaria da República”. Estaria ele sujeito à ira de monarquistas ou republicanos? Como achar uma posição que não o comprometesse? Diante do embaraço, Aires sugere a adoção do nome de “Confeitaria do Governo”, mas esta também causou apreensão, pois todo governo também teria oposição. Por fim, parece acolher a solução pelo nome de “Confeitaria do Custódio”, certo de que, como alertou Aires, “as revoluções trazem sempre despesas”.

Delineado o recorte dessa belíssima obra literária, observa-se uma pertinente intertextualidade entre o romance de Machado de Assis e fatos ainda presenciados nos dias atuais no Brasil. A situação tragicômica vivida por Custódio denota uma acomodada e descompromissada posição política brasileira. Pode-se ler o Brasil por intermédio da literatura e a presente obra traz uma narrativa alegórica perfeitamente aplicável a questões existentes nos dias atuais.

Em 1972 foi publicada a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano. O Brasil, desde então, apresentava uma postura proativa e amparadora do meio ambiente, destacando-se, entre muitos, a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), da qual o país foi anfitrião. Possuidor de riquíssimos biomas e tendo na Floresta Amazônica a sua maior protagonista, o Brasil é o lar de milhares de espécies de animas e vegetais, compondo, pois, a maior biodiversidade do planeta.

Não obstante as deficitárias estruturas administrativas, o país sempre se engajou em prol da tutela ambiental e produzia resultados. No entanto, em tempos recentes, passou a caminhar sob os auspícios de um forte ceticismo no trato dessas questões. Nos últimos anos observou-se o aumento das taxas de desmatamento e prática de crimes ambientais em níveis exponenciais e alarmantes. Diversos ambientalistas, cientistas e pesquisadores apresentaram dados estarrecedores da aceleração da destruição da Floresta Amazônica e do Pantanal. Diante de imagens assustadoras, ainda se presenciou no dia 10 de agosto de 2019 o infame “Dia do Fogo”, em que uma série de queimadas criminosas foram perpetradas sem resposta institucional adequada.

Na sequência, seguindo uma linha governamental que já vinha sendo adotada, buscou-se combater os dados em vez dos agressores. Em um cenário digno de George Orwell, pode-se acompanhar uma intensa luta pela reconstrução dos fatos e negacionismo. Tal qual discorreu George Orwell em sua prestigiada obra 1984, os dados ambientais até então apresentados passaram a ser alvo de descarte no “buraco da memória” e de nova conformação pelo Ministério do Meio Ambiente.

Reduções orçamentárias, desaparelhamento institucional, avanço da extração ilegal de madeira, impunidade, deformações estatísticas, perdão de multas e ceticismo consubstanciaram a tônica ambiental do país nos últimos anos. No entanto, de forma surpreendente, durante a Cúpula do Clima realizada no dia 22 de abril de 2021, o mandatário do governo brasileiro apresentou discurso moderado e conciliador com as questões climáticas e necessidade de refrear o desmatamento. Tal postura, por certo, causou surpresa, sobretudo diante dos discursos negacionistas até então reverberados.

Ao rememorar Machado de Assis, torna-se oportuno ponderar: o que causou a “mudança na placa do meio ambiente” na administração atual? Em um paralelismo, pode-se buscar compreender que a tônica era então pujante no sentido de imprimir letras carbonizadas na flora pátria e tingidas de escarlate na fauna igualmente consumida. Todavia, os “novos rumos” igualmente demandaram uma alteração de identificação. Por certo que seria demasiadamente contraditório à administração assumir um tom “verde”.

Ao que parece, a solução será a alvitrada pelo Conselheiro Aires: Governo. A forte rejeição internacional, eleições, crise econômica, demandas por vacinas e outros fatores indicam que a tabuleta da administração na área será grafada como “Meio Ambiente do Governo”. Isto é, soluções casuísticas para atender a malfadada “governabilidade” hão de imprimir ritmo no trato daquilo que é essencial para a humanidade. Um verdadeiro mimetismo político em detrimento da essencial tutela ambiental. O meio ambiente desconhece ideologias, política, fronteiras, mas sim carrega as mais variadas manifestações do viver, em suas incontáveis simbioses, em uma indissociável conformação holística.

Na narrativa de Machado de Assis, Custódio apenas queria garantir a continuidade de sua confeitaria. Na política ambiental pátria não pode existir espaços para conveniências. O ecossistema localizado nessas fictícias fronteiras desta terra chamada Brasil clama por vida, por equilíbrio e respeito. Que a “placa” do meio ambiente, alheia a qualquer conjuntura política, seja o desejo genuíno e urgente de preservação, restauração, respeito e responsabilidade, sem o qual inexistirão condições sadias para o bem mais precioso que é a vida.

*Fernando Procópio Palazzo é advogado especialista em Direito Penal e Criminologia.

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