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Presidente Bolsonaro acena para manifestantes do alto da rampa do Palácio do Planalto neste domingo (17).
Presidente Bolsonaro acena para manifestantes do alto da rampa do Palácio do Planalto.| Foto: Sérgio Lima/ AFP

Existe no pensamento conservador uma ligação muito próxima à religião. Boa parte dos conservadores advém de matriz religiosa judaica e judaico-cristã. De certa forma, está por detrás das tradições religiosas uma defesa do hábito na instrumentalização do racionalismo político. Que de certa forma é herdeiro da Revolução Francesa e de uma engenharia social.

Os conservadores religiosos entendem que a necessidade humana (ética, social e moral) pode ser respondida pelos postulados da religião que há anos sustentam o mundo ocidental. Portanto, tudo o que nasce como fruto das revoluções que veem a religião como atraso de vida, na verdade, precisa ser combatido com uma postura de mais ênfase na presença da religião na cultura que pauta o jogo, na tentativa de mostrar que a religião contribui para o avanço da humanidade. O que não é mentira, grosso modo, quando olhamos para o espaço embrionário que a ciência teve no protestantismo, bem como no tema dos direitos humanos e outras ações sociais e humanitárias. Parece que o grito de Voltaire, que via a religião como uma superstição das trevas, ecoa em muitas utopias políticas nesta era. O que se esquece é de que a via pública democrática somente é possível graças à cultura protestante, que ensinou para o ocidente como praticar a pluralidade na cultura.

A religião, no mundo contemporâneo, tem se acomodado aos ditames da sociedade e às pautas que brotam das discussões ideológicas. A religião perdeu seu espaço profético, fruto de um não partidarismo que a tornava livre para ser consciência do Estado e não sua serviçal. Assim, ou ela se tornou um produto do seu meio, ou passou a entrar em choque com o contemporâneo, caindo na desgraça do fundamentalismo religioso como postura reacionária.

O que significa dizer que a política se tornou a nova religião? Pensemos nas categorias sob as quais a religião se apresenta: sentido de vida, esperança de um mundo melhor, fim da maldade (isto inclui homens maus, por exemplo os criminosos), bem-estar, um messias (Salvador), proteção e cuidado familiar, preservação dos bons costumes (a moral) etc. Com o avanço e a proliferação de uma teologia liberal embutida de universalismo, pluralismo e secularismo, veio a ideia de que não existe verdade, o que existe são verdades. A religião foi sendo enfraquecida e seu discurso se tornou retrógrado e inimigo das mudanças culturais e sociais. Isso gerou uma pressão hermenêutica (de fora pra dentro) a fim de levar a religião – e aqui me refiro à judaico-cristã – a rever suas doutrinas e afrouxar suas rédeas. Então, aquilo que era considerado coluna da sociedade (por exemplo, a família constituída de homem e mulher) perde sua força e a flexibilização acontece. Claro que esta pressão é feita por grupos de minorias, cujo belo estardalhaço ecoa na religião.

O povo latino-americano é conservador (da moral e bons costumes); o brasileiro, por sua vez, é muito conservador. Os dados estão aí e o número deles cresce cada vez mais no Brasil, inclusive entre os jovens. Uma vez que a religião perde seu espaço ou sua voz por conta do quadro que descrevi acima e também pelos inúmeros escândalos de líderes midiáticos, as pessoas precisam de uma nova orientação ou de uma nova muleta, pois ninguém vive sem um apoio que possa lhe permitir ver um horizonte utópico. A política percebe a brecha e encontra seu campo fértil. Observa-se que tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil ambos os atuais presidentes tiveram uma força de apoio imensa dos religiosos de origem evangélica, que os colocaram no poder.

A política traz exatamente aquilo que a religião prometeu, mas não cumpriu. O discurso do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, um belo slogan religioso. Para os adeptos da homilia, dá para tirar um sermão desta máxima. O discurso de Bolsonaro está entranhado de postulados do conservadorismo religioso. Ele traz a esperança de uma grande parte da população que estava desacreditada não somente em políticos, mas na própria religião. Há no coração religioso conservador e fundamentalista um anseio de ver sua nação governada por alguém que compartilha das suas mesmas convicções. Prato feito para o marketing de Bolsonaro, que se batiza no Rio Jordão, em Israel, frequenta cultos evangélicos e posa ao lado de figuras de representação nacional do cenário religioso. Ele consegue ganhar cristãos e judeus. Dois pilares que o ajudaram a se eleger.

O “messianismo” de Jair Messias Bolsonaro era a tão esperada chegada de alguém que poderia colocar em prática os valores do reino de Deus na terra. O que já temos visto é que isso virou um fiasco. Não está dando certo e não dará. Ninguém muda o comportamento de pessoas com uma canetada. Qualquer iniciante de filosofia e psicanálise sabe do imenso trabalho que é mudar vícios, hábitos e comportamentos. Havia uma fantasia de fazer do Brasil um paraíso de pessoas pudicas e castas andando nas ruas. Uma vez que, então, cumpríssemos estes “mandamentos”, Deus nos abençoaria e faria nossa nação prosperar. Esta engenharia é tão religiosa, e portanto tão ruim, porque cria uma barganha com o divino e sacraliza uma cultura sob interesses políticos e de poder, travestidos de piedade ou supostas boas intenções. Nada poderia ser mais cruel.

O fenômeno Bolsonaro é resultado de uma religião judaico-cristã mais de origem evangélica (com seus líderes midiáticos) que sempre almejou o poder e encontrou na figura do presidente alguém controlável e acessível, a fim de comprar pautas de interesse do gueto religioso que ansiava ditar as regras do Brasil. Tudo isso usando o nome de “Deus” (este Deus usado por essas pessoas é duvidoso), o que faz com que muitas pessoas tenham medo de contrariar, duvidar e questionar, já que, se assim procederem, estariam afrontando diretamente a Deus, que, segundo o discurso conservador religioso, foi quem colocou o presidente no poder.

Esta nova religião da política é notoriamente forte. Em nome dela, pessoas terminam relacionamentos; deixam de frequentar lugares e até igrejas que têm um discurso destoante do governo; brigam com familiares; e alguns chegam até a dar a vida. São as mesmas categorias presentes numa religião.

No mundo contemporâneo, uma religião, para ser bem-comportada, tem de se submeter à lógica do Estado democrático laico, como diria John Stuart Mill no início do século 19. Por isso, deve “baixar a bola” e entrar na competição do “mercado de sentido da vida” e jamais questionar a sociedade laica. Se o fizer, cai na tentação fundamentalista. Um beco sem saída.

Christopher Marques, mestre em Teologia e pós-graduado em Ciências da Religião, é fundador do Projeto Repense, professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina e autor de “Um novo olhar para a missão da Igreja”, “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” e “Quando a vontade de viver vai embora”.

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