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A raiva dos cansados
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Entre 2013 e 2016, multidões inéditas em nossa história protestaram “contra”. Desde 2019, grupos bem menores e de identidade mais definida se manifestam periodicamente “a favor”: um grupo a favor de Bolsonaro e outro a favor da esquerda que queria “Lula livre” e hoje pede Lula de volta. A maioria da população insatisfeita, mas politicamente dispersa, sem bandeira ou candidato de estimação, não foi mais vista nas ruas desde 2016. Entre os manifestantes dos dias 7 e 12 de setembro, do dia 2 de outubro e os que ficaram em casa, quatro grupos se destacam.

Primeiro, os bolsonaristas e lulistas, opostos, mas incrivelmente semelhantes. Amam ou odeiam personagens concretos, com nome e sobrenome, em clima de unanimidade: “Lula é ladrão e Bolsonaro é honesto” – ou o contrário, para a outra massa militante. Se fatos contradizem essas crenças, nega-se os fatos como se fossem invenções do grupo adversário ou da “mídia”, abominada por ambos.

Em segundo lugar, há os independentes, críticos – espécie de consciência das democracias –, que formam sua opinião, nunca definitiva, com base em fatos e valores claros. Aí encontramos céticos, direitistas ex-bolsonaristas, esquerdistas sem padrinho, que, no conjunto, não têm uma bandeira específica – além da defesa da democracia – ou uma organização em que se apoiar. Estão quase sempre na oposição e manifestam-se pelas frestas e brechas – sobretudo na internet – contra os poderes hegemônicos à esquerda e à direita. No dialeto bolsonarista, são os “isentões”. No dia 2 de outubro, alguns levaram pancadas na rua dias depois de o ator José de Abreu repostar que “soca até ser preso” a deputada independente Tábata Amaral.

Também existem, é claro, apoiadores de um dos dois grandes nomes por razões não personalistas, que não nutrem confiança ou devoção especial por eles, mas emprestam apoio por cálculo estratégico ou pela lei do menos pior. Mas a voz desses reticentes mistura-se, perde-se, no canto entusiasmado dos militantes e, afinal, resta indiscernível.

E, por fim, há a população majoritária, descrente da política e dos políticos, que dificilmente se manifesta nas ruas, mas a cada dois anos fala pelas urnas (inclusive, e especialmente, pela abstenção). É centrista, legalista e muito mais sensível à economia do que a ideologias e considerações abstratas. É cobiçada pelas massas ideologizadas e pelos independentes que mencionei, mas só sai às ruas quando sente-se exasperada pela compressão econômica e quando, ao mesmo tempo, os agentes políticos sabem comunicá-la um caminho claro, provável e seguro de mudança. Para a população majoritária entender que é hora de encher as nossas avenidas, é necessária uma percepção clara e convincente de problema-solução.

Maioria da população insatisfeita, mas politicamente dispersa, sem bandeira ou candidato de estimação, não foi mais vista nas ruas desde 2016.

Ao problema da crise econômica e corrupção sob Dilma, essa população viu um caminho na “ponte para o futuro” do MDB. Ao problema da estagnação generalizada do petismo percebida em 2013, a população sentiu-se convencida de que sua presença maciça nas ruas levaria ao chacoalhar de mudanças. Ao problema do desastre Jair Bolsonaro, qual é a solução clara, provável e segura? Sem a enxergar, essa maioria achou melhor esperar as eleições de 2022, ficando em casa nos dias 12 de setembro e 2 de outubro.

Não é porque o povo ama Jair Bolsonaro que esses dois protestos fracassaram, em comparação com o de 7 de setembro. A massa ligada ao presidente continua minoritária e em queda. Nem a já lendária “terceira via” está enterrada, pois quem se manifesta nas ruas é uma pequena fração dos milhões que, ano que vem, estarão diante da urna eletrônica.

Consideremos o seguinte: basta uma insatisfação para não votar no candidato Fulano, mas, para sair num domingo, debaixo de sol, com a variante delta por aí, para protestar contra Fulano, é necessária uma convicção que o antibolsonarismo impeachmentista só transmitiu a pouquíssimos.

O antibolsonarismo impeachmentista é um belo prato de verdades para animar quem não está com fome, literalmente, e não sente aquela urgência física de uma solução eficaz e certeira. Para o dia 12, os liberais se esforçaram junto à classe média despolitizada – e já tão desesperançada – pontificando sobre a democracia e as vantagens de um governo normal, mas só trouxeram para a rua sua pequena elite de “isentões” – num bom sentido. Para o dia 2 de outubro, as lideranças esquerdistas não se saíram muito melhor e a presença mais sentida no protesto de sábado foi mesmo a de Lula, ausente.

A essa altura, já está claro que não haverá impeachment. Enquanto isso, o presidente Bolsonaro dá sinais cada vez mais perceptíveis de que considera nem se lançar à reeleição – seu desinteresse em criar ou cooptar um partido, a um ano da disputa, e sua vexatória capitulação ao STF e ao Centrão, virando as costas para suas bases, falam alto nesse sentido. Quem ganha esse xadrez? Superficialmente, Lula e o PT, mais favoritíssimos que nunca. Para um olhar mais fundo, não há ganhadores, no entanto, pois, seja lá quem assumir a Presidência em 2023, será a partir de um número absoluto de votos inferior – talvez bem inferior – ao dos vencedores nas últimas disputas e com taxa de abstenção recorde. A “crise de representatividade” – ou, mais geralmente, a “crise da política” –, que fez explodir junho de 2013 foi reinstaurada agora pelo duplo fracasso político de Bolsonaro e dos seus opositores à esquerda e à direita.

Sem uma figura de união nacional – engana-se ou quer enganar quem espera isso de Lula ou do PT –, o divórcio entre Brasília e o Brasil deve se aprofundar bastante nos próximos anos, ao mesmo tempo que o horizonte econômico interno e internacional é péssimo. Receita perfeita para um novo junho de 2013 de dimensões incalculáveis no médio prazo, se a faísca certa fizer estourar toda a insatisfação represada, mal-representada pelas urnas e que não mais aceita se manifestar ao lado das atuais direita ou esquerda.

Vale lembrar que junho de 2013 não aconteceu porque o povo brasileiro, conservador, não se via representado pela hegemonia “comunista” do PT – como diz certa mitologia bolsonarista –, mas sim porque, após dez anos de propaganda sobre justiça social, os serviços públicos continuavam péssimos e o país, estagnado. Só a corrupção progredia a passo assombroso. Neste momento em 2021, afundamos numa estagnação ainda pior, mais cruel com os mais pobres, a corrupção espalha-se visivelmente e a crise de representatividade, a dissonância entre Brasília e o Brasil, é uma ferida aberta sem médico ou remédio à vista.

Posta de lado pelas marés lulistas e “patriotas”, a população majoritária parece cansada demais para afinal gritar e impor a sua voz e suas demandas muito concretas, muito diretas. Até quando? Será que a sua urgência será o fator a romper a tal “polarização”, da qual a maioria parece desinteressar-se e se distanciar cada vez mais? Numa atmosfera repleta de “narrativas”, “guerra cultural” e “fake news”, a fome física de milhões poderá ser a batida da realidade social na porta da nossa loucura política.

Guilherme Hobbs é tradutor e escritor.

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