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Ministério da Saúde divulga tutorial de como fazer as máscaras em casa
| Foto: Bigstock

A pandemia de coronavírus fez surgir reflexões interessantes sobre as lições que nós podemos aprender com a crise. Três pontos chamaram a atenção até o momento: a união dos diferentes povos contra a ameaça comum, a força das redes sociais na mobilização das pessoas e, por fim, o confronto entre a visão científica e a ideológica sobre como lidar com o problema.

Unidos pelo inimigo comum. Confrontadas com um vírus que ataca o sistema respiratório, com grau preocupante de letalidade, as pessoas reagiram de maneira coordenada e única na história, rapidamente revendo as suas prioridades. A OMS coordenou as informações sobre a doença e suas consequências e os esforços por interromper os surtos ganharam proeminência nas metrópoles mundiais. O autoisolamento e a quarentena (voluntário e obrigatória, respectivamente) são esforços nunca vistos em escala global.

Como já se sabe, não há vacina contra o coronavírus e o tratamento é sintomático e experimental. Os gargalos nos sistemas de saúde que até então eram desconhecidos da população em geral – dos quais a situação dramática de Bergamo é símbolo – tornaram-se evidentes e a disseminação rápida do vírus por vários continentes mostrou que a resposta mais eficaz para evitar um número maior de mortes era um esforço conjunto da população em adotar o distanciamento social.

A ficção científica já tinha previsto que seria necessária uma ameaça externa para unir as diferentes nações. Na graphic novel Watchmen, Alan Moore esboçou o plano mirabolante de um vilão genial que, em plena Guerra Fria, fazia a humanidade acreditar que estava sendo atacada por seres alienígenas, obtendo assim o fim das hostilidades entre Estados Unidos e União Soviética, não sem antes destruir metade da população de Nova York no processo. O que no texto do escritor britânico era uma apoteose fantástica para os jovens leitores de quadrinhos, na realidade mostrou-se bem menos cinematográfico. Um vírus invisível é o inimigo. A morte causada por ele não é uma explosão no meio de Nova York, mas um fim agonizante e triste em leitos de hospital. Mas o resultado das ameaças é o mesmo, um sentido de união dos povos da humanidade.

Com o fechamento de fronteiras e de grande parte do comércio e dos serviços nas metrópoles, seria possível que ocorressem saques em massa, turbulências sociais e confronto com forças de segurança, como sempre acontece em filmes de temática pós-apocalíptica. No entanto, o que se viu até agora vai em sentido contrário: a sociedade se mobilizou em múltiplas redes de ajuda mútua.

Médicos chineses voaram para a Itália levando o know how de um país que parece ter enfrentado o primeiro surto da doença com sucesso. Diversos países enviaram doações e mantimentos para as áreas mais afetadas; atletas e celebridades organizaram arrecadações milionárias; e pelas redes sociais se espalharam diversas ideias de auxílio mútuo, desde o incentivo para comprar de pequenos negócios, passando por redes de voluntariado para a saúde pública e para o bem-estar das pessoas isoladas, até a fabricação de máscaras artesanais. Na esfera macroeconômica, os governantes organizaram pacotes gigantescos de estímulo ao mercado. Enfim, a humanidade se uniu contra o inimigo comum.

Yuval Harari, o mais importante intelectual da atualidade, afirmou reiteradas vezes que os desafios do século 21 não poderiam ser enfrentados pelos países individualmente; o mundo está por demais globalizado e interconectado e os desafios são grandes demais até mesmo para as superpotências. Bill Gates já tinha enfrentado explicitamente o problema da falta de preparo para uma próxima grande epidemia. E, apesar de os governos terem dado mais importância às disputas políticas e econômicas em seus programas nas primeiras duas décadas do século, a ameaça comum rapidamente fez a razão voltar a estar acima de todos. Médicos e cientistas foram chamados a dar a resposta ao problema e, quando a solução do distanciamento social se mostrou a mais eficaz, considerando-se os dados científicos, a população aderiu em massa, mesmo antes do comando das autoridades.

Interessante notar que a retração da movimentação e consumo nas últimas semanas teve efeitos não apenas no combate entre humanos e o coronavírus. Os microrganismos patógenos podem até ser os únicos seres a ameaçar a humanidade, mas nós somos ameaça para uma quantidade muito maior de seres vivos. Neste breve entreato da comédia humana, a natureza parece ter se recuperado um pouco dos incessantes ataques que nós temos lhe feito. A poluição em Pequim diminuiu drasticamente, golinhos foram filmados nadando nas águas mais limpas de Veneza e, num espetáculo poético da natureza, pavões desfilaram exuberantes por uma avenida de Madri.

Mais relevante que tudo isso, é provável que o aquecimento global – este, sim, o grande vilão que ameaça a humanidade – diminua o seu ritmo de expansão em decorrência da resposta humana à pandemia, como apontaram John Schwartz e Meehan Crist em artigos no The New York Times. Pelas redes sociais, começaram a circular textos e vídeos louvando estes acontecimentos como o início de uma nova era, em que a humanidade se conscientiza das consequências carbônicas e destruidoras de seu way of life.

Isolados como nunca, conectados como sempre. O isolamento maciço de milhões de pessoas em suas casas não foi obtido pelos governos, e sim pelo Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp. Foi pelas redes sociais que a cobertura da mídia se proliferou, foi pela internet que a reação em cadeia do distanciamento social foi se espalhando das áreas mais atingidas pela doença para as áreas ainda sem surto. O que os governantes fizeram foi seguir a opinião pública, em vez de guiá-la. Nós podemos estar diante de um movimento democrático muito mais profundo do que pode parecer à primeira vista.

Pelo menos no mundo ocidental, num primeiro momento os governantes vieram a público anunciar medidas que as pessoas não acharam suficientes. Os internautas difundiram a opinião dos especialistas, reproduzindo em seus perfis pessoais boletins médicos, entrevistas com epidemiologistas e autoridades sanitárias, e as pessoas rapidamente tomaram suas próprias decisões sobre o combate à pandemia. Os governantes, seguindo o movimento das massas, iam a público apenas para corroborar aquilo que já havia sido “votado” e decido pelos likes e shares nas telas dos celulares. A população esclarecida, mais do que os déspotas vagarosos, colocou o saber acima de todos. Se a OMS anunciou que o distanciamento e a higiene são os meios mais eficazes de combate à pandemia, pouco importou o que disseram sobre o assunto os atores do teatro de vampiros que é a política.

Registrou-se grande aumento no fluxo de informações pelas redes sociais e espalhou-se rapidamente a ideia de distanciamento social como medida eficaz de combate ao vírus. O isolamento das pessoas as fez passar mais horas on-line, o que por sua vez reforçou a discussão pública do problema pelas redes, num processo de retroalimentação virtual. Assim como ocorreu com os casos de ressurgimento da natureza citados acima, não demorou para a poesia humana aflorar nas manifestações virtuais e reais. Casamentos e festas de aniversário foram realizados por videoconferências e artistas anônimos demonstraram seus talentos pelas janelas (virtuais ou não) para acalentar o próximo, ora distante. Homenagens aos profissionais da área de saúde foram combinadas e transmitidas pela internet, o home office ganhou força e rapidamente percebemos que estamos mais conectados do que nunca. Somos todos um só povo, seja em Wuhan, em Bergamo ou em Curitiba. Os líderes, nesse cenário, passaram a ser os coadjuvantes desta história.

A aldeia global agora possui novos caminhos para tomada de decisões que fogem à atuação burocrática dos Estados. A internet foi a ágora do debate público e o que se cobrou dos parlamentos e governantes foi que promulgassem as normas burocráticas para efetivar o que já tinha sido decidido pelo povo, com fundamento no saber científico compartilhado virtualmente. Pelo menos no que tange às medidas pessoais de prevenção e combate à epidemia foi isto que ocorreu, embora na área econômica governos continuem liderando as movimentações.

A opção pela visão científica. O caso brasileiro é emblemático. Após um desastroso pronunciamento presidencial minimizando a gravidade da pandemia e conclamando o povo para voltar às ruas, a resposta da maior parte da população brasileira foi a de ignorar o presidente da República. Logo após o pronunciamento, as redes sociais foram inundadas com mensagens conclamando as pessoas a permanecerem em casa. Dados científicos sobre os efeitos do distanciamento social foram divulgados pelos veículos oficiais de imprensa e rapidamente replicados nos perfis de milhões de internautas, campanhas por maior aporte de recursos públicos para as áreas de ciência, tecnologia e educação ressoaram por toda a internet.

É irônico pensar que o presidente do Brasil foi eleito com um slogan de campanha em que afirmava “Deus acima de tudo, o Brasil acima de todos”, mas, quando a população brasileira foi confrontada com a ameaça real de uma epidemia que pode ceifar milhares de vidas, soube deixar de lado os conceitos ideológicos de nacionalismo e monoteísmo e privilegiar a razão e o saber. Pouco importou o que disse o presidente da República, pois as pessoas escolheram acreditar nos médicos, cientistas e professores, em vez dos políticos. A população escolheu a visão científica de como combater o problema, deixando a ideologia de lado no que diz respeito especificamente aos esforços contra a disseminação da pandemia.

Na luta global contra o coronavírus, saem enfraquecidos o vírus e os líderes políticos, e fortalecidos o povo, a razão, a imprensa livre e as redes sociais como forças dinâmicas de mobilização internacional.

Ricardo Pontoglio é advogado, professor e especialista em Relações Internacionais.

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