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Muito se tem comentado sobre os avanços que a medicina nos apresenta, através de novas propostas terapêuticas em campos do conhecimento antes reservados ao território da ficção científica. Paradoxalmente, observamos que, ao mesmo tempo em que a sociedade recebe promessas de vida longa e saudável, a figura do médico torna-se menos valorizada e, cada vez mais, vemos a sociedade clamando pela humanização da medicina.

Como explicar esta situação contraditória? Estariam os profissionais malformados e sem o adequado domínio das novas tecnologias? A resposta seguramente é negativa. Entretanto, é impossível negar que o relacionamento médico-paciente encontra-se significativamente comprometido. Cresce de maneira expressiva o número de denúncias contra médicos e a atividade judicante dos Conselhos de Medicina demonstra que 70% dos processos éticos instaurados decorrem de inadequado relacionamento intersubjetivo entre ambos.

É certo, outrossim, que em uma sociedade dominada pelo individualismo, onde o ser humano perdeu sua condição de sujeito portador de dignidade e merecedor de respeito, muitos são os fatores que podem ser apresentados como causadores dessa catástrofe relacional. Alguns pensadores, entre eles o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, definem o mal-estar da pós-modernidade como "tempos líquidos", em consequência da dissolução de todos os valores "sólidos" que nos acompanharam ao longo de nossa história.

Sem pretender esgotar todas as complexas causas do insatisfatório relacionamento médico-paciente, apontaremos dois, que nos parecem primordiais. O primeiro deles, muito bem analisado por pensadores como Ernest Jünger, Martin Heidegger e Hans Jonas, é o da sociedade em que a técnica ocupa posição privilegiada e convive com pessoas subjugadas ao domínio de um véu tecnológico, assumindo, assim, a condição de um fim em si mesmo. Nesse modelo, as pessoas deixam de perceber que a biotecnologia é apenas um braço auxiliar da ciência e, portanto, complementar ao raciocínio do profissional. Herdamos do século 20 o mais extraordinário desenvolvimento da tecnologia biomédica que dominou nossas mentes e corações, a tal ponto que passamos a subestimar o raciocínio clínico, devotando desproporcional credibilidade à biotecnociência. O mais desconcertante diante desta situação é que parece cada vez mais distante a possibilidade de reconhecermos que a tecnologia é obviamente boa. Entretanto, poderá ser prejudicial se utilizada de maneira insensata e imprudente.

A segunda variável talvez seja a mais complexa. Trata-se do exacerbado individualismo, a perda do sentido de solidariedade, o que parece ser o mais importante fator desagregador da sociedade contemporânea, que se encontra refém da equação "eu posso, eu quero, eu faço". Estudo da Unesco realizado em Brasília, em que foram entrevistados jovens de classe média submetidos a um inquérito sobre prática de valores morais, constatou que, na percepção deles, humilhar travestis, prostitutas, homossexuais e mendigos seria comportamento de menor gravidade quando comparado à pichação de prédios públicos, destruição de orelhões ou de placas de sinalização de trânsito; 20% dos entrevistados consideraram injustificável qualquer forma de punição decorrente dos ultrajes impostos às mencionadas pessoas.

Cada vez torna-se mais necessário meditar sobre a indagação apresentada por Emmanuel Levinas e assim formulada: como podem esses sujeitos almejar um estatuto de humanidade e pertença se não se olham no rosto ou se olham com tanta brevidade? Segundo o filósofo, seremos dotados de humanidade na medida em que acolhermos todas as pessoas que nos cercam como seres biopsicossociais e espirituais, e aceitarmos as responsabilidades que decorrem desse relacionamento sob a égide da ética da alteridade.

José Eduardo de Siqueira, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, é coordenador do curso de Medicina da PUCPR, câmpus Londrina, e membro das Câmaras Técnicas de Bioética e Reprodução Assistida do CRM-PR e da Câmara Técnica de Terminalidade da Vida e Medicina Paliativa do Conselho Federal de Medicina.

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