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O presidente da Rússia, Vladimir Putin.
O presidente da Rússia, Vladimir Putin.| Foto: EFE/EPA/Alexei Nikolsky/Sputnik/Kremlin Pool

As tensões sobre a Ucrânia pioraram nas últimas semanas pelo acúmulo de tropas russas perto da fronteira ucraniana, o que o Ocidente interpreta como preparativos para uma possível invasão. Os diplomatas ucranianos e russos reuniram-se na capital francesa, Paris, em uma tentativa de encontrar uma solução diplomática para a crise. Em Moscou, o embaixador norte-americano entregou ao governo russo as propostas de Washington para dissuadir a Rússia de invadir a Ucrânia. Ritmada pelas notícias dos fracassos diplomáticos, a angústia dos ucranianos perante a iminência da guerra vai crescendo diariamente.

Diante de todos esses imbróglios, surge algo inesperado que me chamou muito a atenção. Surpreendentemente, uma voz profética ressoa nesse cenário de guerra, como o próprio João Batista proclamando no deserto da desesperança. Durante palestra a autoridades da Índia, no Instituto Manohar Parrikar de Estudos e Análises de Defesa, o então comandante da Marinha da Alemanha, vice-almirante Kay-Achim Schönbach, afirmou que a Ucrânia não recuperará a península da Crimeia e que a Rússia é necessária para uma confrontação com a China. Ele ainda acrescentou: “A Rússia é um país antigo, um país importante, até mesmo nós, a Alemanha e a Índia, precisamos da Rússia, porque precisamos da Rússia contra a China (...) Sou católico romano e muito radical, creio em Deus e no cristianismo, e a Rússia é um país cristão, mesmo se o Putin for ateu, isso não importa”.

Após a fala, que contrasta fortemente com a posição tomada pela União Europeia (UE) e pelos Estados Unidos e seus aliados, o militar renunciou a seu posto. Os comentários levaram o Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia a convocar a embaixadora da Alemanha na Ucrânia, Anka Feldhusen, para enfatizar “a inaceitabilidade categórica” de seus comentários.

A China classifica as relações atuais com a Rússia como as melhores em toda a história. Investigar a força desta aliança é uma questão fundamental para a geopolítica mundial

O profeta Schönbach estava certo em concluir que a Rússia preza pelos seus valores cristãos? E que isso é relevante contra o Partido Comunista da China, mesmo com os dois países sendo fortemente aliados? Na Rússia, muitos cristãos celebraram a festa dos 1.130 anos do batismo do príncipe Vladimir, o Grande, nas águas do Rio Dnieper. Até mesmo o presidente russo, Vladimir Putin (atualmente membro devoto da Igreja Ortodoxa Russa) aproveitou o aniversário daquele evento histórico para discursar: “A conversão ao cristianismo foi o ponto de partida para o estabelecimento e desenvolvimento da identidade nacional russa, a raiz perene, que nutre o povo russo e sua missão histórica no mundo”.

A Rússia é o maior país da Terra em extensão territorial. Dos 144 milhões de habitantes, 82,1% são cristãos, de acordo com a estimativa do World Christian Database. Boa parte desses cristãos (96,6%) é de ortodoxos russos. Apesar de décadas de propaganda ateísta pelos comunistas durante a era soviética, a maioria dos russos se considera cristã. O segundo maior grupo religioso na Rússia, de acordo com o WCD, é o dos muçulmanos, sunitas em sua maioria, que correspondem a 12,2% da população. Para entendermos todo esse contexto e obtermos algumas conclusões, nada melhor do que recorrer à história.

Segundo a tradição cristã, a igreja na região da Grande Rússia tradicionalmente começa ainda no período apostólico, quando Santo André teria chegado aonde hoje é Kiev e profetizado a construção de uma grande cidade cristã. Onde ele teria erigido uma cruz seria hoje a Igreja de Santo André. A história da cristianização da região começou na década de 860. A cristianização oficial da Rússia ocorreu em 988, quando o príncipe Vladimir I, de Kiev, oficialmente adotou o rito bizantino do cristianismo como a religião oficial da Rússia. A milenar Igreja Ortodoxa Russa (IOR) tem um papel dominante na sociedade e cultura russas desde então.

O catolicismo romano chegou à Rússia quando o país estava se expandindo para o Ocidente no fim do século 18, ocupando a parte leste da Polônia e, depois, da Lituânia. O catolicismo permaneceu como a religião de etnias minoritárias da Rússia e da União Soviética, recebendo bastante hostilidade da IOR, que considerava os católicos como uma ameaça à “russianidade”. O protestantismo chegou depois à Rússia, no fim do século 19, e foi recebido com ainda mais hostilidade. A IOR acusou os protestantes de roubar suas ovelhas e frequentemente apelava às autoridades czaristas (sistema político que imperou na Rússia de 1547 a 1917) para impedir suas atividades.

Com a Revolução Russa, em novembro de 1917, um regime ateísta foi estabelecido. Líderes de igrejas de todas as denominações foram presos e enviados a campos de trabalhos forçados. Durante a Segunda Guerra Mundial, Josef Stalin misturou política e religião. Igrejas foram reabertas e restauradas. A IOR teve permissão para treinar e apontar novas lideranças. Batistas e pentecostais, entre outros, foram fundidos em uma união forte. Mas a desconfiança das autoridades permaneceu, pois ainda havia milhares de cristãos e líderes de igreja em campos de trabalho forçado. A KGB, o serviço secreto soviético, se infiltrou em organizações religiosas e tinha informantes em praticamente todas elas. Alguns cristãos se recusaram a cooperar com as autoridades, tornaram-se clandestinos e foram perseguidos. Em 1988, quando a Igreja Ortodoxa Russa celebrou mil anos de existência, ainda havia 300 cristãos presos por causa da fé.

Quando a União Soviética caiu, em 1991, o governo comunista acabou. O ateísmo não era mais propagado e a perseguição religiosa do Estado teve fim. Todos os prisioneiros foram libertados; a vigilância sobre igrejas e cristãos também parou. Tornou-se normal para os russos se identificar com alguma religião novamente, e até mesmo oficiais do Estado podiam fazê-lo. Desde então, a IOR tem tentado reconquistar sua posição dominante na sociedade, mas a Rússia permanece oficialmente como um Estado secular.

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A aliança entre China e Rússia é sólida, tanto econômica quanto política e militarmente. A chave é a agressividade do Pentágono no Mar do Sul da China e nas fronteiras da Rússia. Em ambos os casos, a estratégia é cercar militarmente seus adversários para desestabilizá-los e derrotá-los. Um longo artigo no jornal South China Morning Post, de Hong Kong, intitulado “Como a China e a Rússia forjaram uma amizade depois de superar diferenças de décadas”, observa que a hostilidade ocidental é a chave para a aliança, suportada em “benefícios econômicos mútuos”. Para o jornal de Hong Kong, a conclusão da ponte sobre o Rio Heilong (conhecido como Amur na Rússia), proposta em 1988, “é um sinal de como Pequim e Moscou navegaram nas décadas seguintes para se aproximarem mais do que nunca”. Desde 2013, Putin e Xi Jinping realizaram 37 reuniões por vídeo e o presidente russo estará na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim, nesta sexta-feira.

A atual aliança entre a Rússia e a China repousa em vários eixos. As relações econômicas crescentes são fundamentais. O comércio da China com a Rússia aumentou 35,8% no ano passado, para um recorde de US$ 146,88 bilhões, e deve chegar a US$ 200 bilhões em breve. A China é o maior parceiro comercial da Rússia desde 2010 e também é o maior comprador de suas commodities, com 14%. A interdependência econômica dos dois países continuará aumentando, porque “a China precisa de acesso às vastas reservas energéticas da Rússia no Extremo Oriente para apoiar sua crescente economia manufatureira e a maior população do mundo, enquanto a China é um mercado estável para as exportações de energia da Rússia, por meio deste aumento”, estima Xu Poling, da Academia Chinesa de Ciências Sociais.

Do lado diplomático, Moscou está constantemente atualizando Pequim sobre o progresso nas negociações de segurança EUA-Rússia. Enquanto isso, o Ministério das Relações Exteriores chinês defende um “tratamento justo e equilibrado” sobre a questão da Ucrânia, e que as diferenças devem ser resolvidas “por meio do diálogo e da consulta”. No campo militar, a cooperação está se tornando mais fluida. Os atos mais recentes foram os exercícios conjuntos antipirataria no Mar Arábico, “com o objetivo de aumentar as capacidades dos exércitos dos dois países para salvaguarda de rotas marítimas estratégicas”. O comunicado do Ministério da Defesa chinês disse que as manobras conjuntas aprofundam “a parceria estratégica abrangente China-Rússia de coordenação para uma nova era”. As manobras vieram logo após China, Rússia e Irã concluírem um exercício marítimo conjunto de três dias no Golfo de Omã.

A liberdade religiosa na Rússia está em declínio. A Lista Mundial da Perseguição de 2022 da Open Doors (Portas Abertas) mostra que cristãos sofrem vários tipos de perseguição no país, como paranoia ditatorial, opressão islâmica, protecionismo denominacional e hostilidade etnorreligiosa. Cristãos nativos de origem muçulmana nas regiões de maioria islâmica suportam o peso da perseguição tanto nas mãos da família e amigos quanto da comunidade local; em algumas áreas, têm de manter a fé em segredo por medo de serem executados. Igrejas não registradas ativas no evangelismo podem enfrentar obstruções sob a forma de vigilância e interrogatório pelas autoridades locais.

Famílias muçulmanas, amigos e aldeões exercem pressão especialmente sobre os convertidos nas regiões muçulmanas (especialmente no Norte do Cáucaso), enquanto o governo impõe restrições às atividades da igreja. Muitos russos étnicos deixaram o Daguestão, a Chechênia, a Inguchétia, a Cabárdia-Balcária e a Carachai-Circássia devido aos combates, e as igrejas viram o número de seus membros cair. A aprovação da legislação antiterrorismo em 6 de julho de 2016 resultou em uma proibição total das Testemunhas de Jeová no início de 2017. As restrições trazidas por essa legislação estão afetando cada vez mais os cristãos que não são ortodoxos russos. Quaisquer conexões que os cristãos na Rússia tenham com igrejas e organizações no exterior estão sob vigilância e limitações crescentes. Obviamente, de todas as comunidades cristãs, são as igrejas ortodoxas russas as que têm menos problemas com o governo.

Qual deus, então, a Rússia tem servido e adorado? A cruz ou o martelo? Do lado da cruz existe uma obscuridade: a liberdade religiosa está em declínio e cristãos, principalmente os não ortodoxos, sofrem perseguições. Paralelamente, do lado do martelo comunista, existe uma clareza: a China classifica as relações atuais com a Rússia como as melhores em toda a história. Eles têm se comprometido a cooperar em diversas áreas, incluindo segurança de dados, ciberespaço, Ártico e infraestrutura. Investigar a força desta aliança é uma questão fundamental para a geopolítica mundial, mas ainda fica a pergunta: de que lado a Rússia está?

Lawrence Maximo, professor, escritor e analista político, é bacharel em História e Teologia, mestrando em Ciências Políticas: Cooperação Internacional, mestre em Missiologia, e pós-graduado em Ciência Política: Cidadania e Governação e em Antropologia da Religião.

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