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 | Robson Villalba
| Foto: Robson Villalba

A vinda do aiatolá Mohsen Araki a São Paulo e a palestra que ele faria na cidade despertaram a atenção não só dos agentes políticos e de segurança nacional, mas igualmente daqueles que militam na área jurídica. Araki é uma das mais importantes vozes do Islã xiita e do pensamento islâmico radical. Prega, dentre outras coisas, a destruição do Estado de Israel, a pena de morte aos ateus e o uso do terrorismo como instrumento de luta política. No Brasil – país da piada pronta –, iria proferir a palestra “Os muçulmanos e o enfrentamento ao terrorismo radical”. Seria o mesmo que dar a palavra ao corrupto para defender o combate à corrupção, ou ao pedófilo para defender os interesses das crianças abusadas sexualmente. Como é natural dos discursos extremistas, sua mensagem é impregnada de ódio. Ódio contra Israel, os judeus, os ateus ou qualquer outro “infiel”. Sua palestra foi cancelada devido à forte reação de parlamentares, líderes das mais diversas religiões e instituições. Aqueles que o trouxeram ao Brasil chegaram a dizer que ele não mais viria, o que foi desmentido com seu desembarque em Guarulhos na quinta-feira.

Em sua recentíssima obra Todos Contra Todos – O ódio nosso de cada dia, o historiador e professor Leandro Karnal faz interessante reflexão sobre o tema. Afirma que o ódio é, ao mesmo tempo, o gêmeo do medo, a interrupção do pensamento e uma irracionalidade paralisadora. Segundo ele, como pensar é árduo, odiar é fácil. Este “ópio da mente” é o ponto de partida para a violência, que nada mais é senão a exteriorização da ira, a canalização da raiva. Ocorre que para a concretização do ato violento, é necessário previamente o convencimento de uma plateia que, por algum motivo, dá ouvidos ao discurso odioso. Por exemplo: antes da eclosão do regime nazista e suas barbáries, ocorridas nas décadas de 30 e 40 do século passado, a manifestação dos ideais do nazismo já havia sido escancarada anos antes, com a publicação de Mein Kampf (“Minha Luta”), por Adolf Hitler, em 1925. Conclui Karnal que “toda violência inclui um processo de diálogo”.

O hate speech está muito mais próximo de um ataque do que de uma participação em um debate de opiniões

Eis aí o grande cerne da questão: o aiatolá Mohsen Araki não vem ao Brasil para praticar algum ato terrorista, explodir sinagogas ou assassinar ateus. Ele está aqui com o seu discurso de ódio, sua fala radical e sua raiva direcionada aos inimigos por ele eleitos. Contudo, longe de ser algo insignificante ou mero debate acadêmico, suas palavras são justamente a fase anterior à violência, o momento prévio ao combate, a sedimentação das balizas de sua ideologia.

A questão ganha contornos jurídicos diante do consagrado direito fundamental à liberdade de expressão, constitucionalmente previsto pelo artigo 5.º, IX, da Carta Magna. Vivemos, felizmente, em uma democracia que garante a livre manifestação, independentemente de censura ou licença. Sob este prisma, seria um ônus do regime democrático aceitar todo e qualquer discurso, por mais odioso, preconceituoso ou radical que seja. Nada poderia ser feito, portanto, senão aceitar as palavras do referido aiatolá, seja lá qual for o seu teor. Contudo, essa compreensão é muito rasa. A liberdade de expressão não é – e nem deve ser – absoluta.

A sociedade vive a expansão do que se convencionou chamar de “hate speech” ou “discurso de ódio”. Ao direito, resta saber se tal forma de expressão deve ser livre ou deve ser proibida por um Estado Democrático de Direito como o nosso. Sobre o tema, o constitucionalista Daniel Sarmento tem interessantíssimo artigo, chamado “A liberdade de expressão e o problema do ‘hate speech’”, no qual sustenta a necessidade de relativização da liberdade de expressão frente aos discursos de ódio. A ausência de caráter absoluto do princípio da liberdade de expressão nesses casos igualmente encontra assento constitucional, com o compromisso de construção da igualdade e luta contra o preconceito, presentes nos artigos 3.º e 5.º, XLII da Constituição. Ademais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 – do qual o Brasil é signatário –, expressamente afirma não só que a liberdade de expressão pode ser limitada visando “o respeito aos direitos e à reputação de terceiros”, como também que “qualquer defesa do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, hostilidade ou violência deve ser proibida por lei”. É perfeita a análise de Sarmento quando diz que o hate speech está muito mais próximo de um ataque do que de uma participação em um debate de opiniões. E, como ataque que é, não deve ser tolerado.

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O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se debruçar sobre o tema. Foi em 2004, no paradigmático caso envolvendo Siegfried Ellwanger, que editou e publicou livros de conteúdo antissemita, inclusive negando a ocorrência do Holocausto. Ao analisar a questão no Habeas Corpus 82.424, a Suprema Corte assentou o entendimento segundo o qual, como qualquer direito individual, a garantia constitucional da liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser afastada quando ultrapassar seus limites morais e jurídicos. Naquele caso, a referida garantia foi afastada em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.

Nesse sentido, foi extremamente feliz o manifesto contrário à vinda do aiatolá, assinado pelo arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, pelo líder islâmico Houssam Ahmed El Boustan e pelo rabino da Confederação Israelita do Brasil Michel Schlesinger. Nele, afirmam que “no Brasil, pessoas de diferentes religiões dialogam, convivem, celebram contratos, fazem comércio, estudam e veem seus filhos e filhas crescerem juntos em harmonia”. Têm eles toda a razão. O discurso do líder xiita não é de livre pensamento, mas sim de ódio. Confessadamente, seu objetivo é destruir a única democracia do Oriente Médio, um país que, em sua curta história, destacou-se nos campos tecnológico e científico, ainda que sob a inafastável tensão com seus vizinhos. As palavras de Mohsen Araki não são construtivas; são destrutivas. Sua ideologia não é de consentimento ou de união; é, ao revés, de dissentimento e divisão. Certamente ele não está aqui para pregar a paz entre os povos e a igualdade entre as nações. A palestra no Novotel pode ter sido cancelada, mas que outros palcos e plateias ele encontrará?

Alexandre Knopfholz, advogado, é mestre em Direito e professor de Processo Penal do Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba).
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