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Todo político tem um instinto pelo poder e outro pela história. Quer força política para garantir um lugar na história, e para isso busca votos dos eleitores de hoje, olhando para os futuros leitores da história de seu país. Ele cuida do mandato e da biografia.

O problema é que o mesmo mandato que constrói a biografia pode destruí-la, até porque, em geral, os últimos gestos e falas marcam mais do que atos do passado.

O Brasil tem uma dívida para com o presidente Sarney, que pode se orgulhar de ter sido o condutor do processo de democratização do Brasil. Durante o seu mandato como presidente da República, foi capaz de levar adiante todos os compromissos das forças democráticas. Mas isso é história. Quando decidiu continuar na política, ele optou por guardar sua biografia até o final de suas atividades atuais.

Se, depois de seu mandato de Presidente da República, o ex-presidente Sarney tivesse se recolhido à história, fora da política, certamente seria hoje tratado como um "velho estadista", não pela idade, mas pela reserva biográfica. Como acontece com Mandela, Carter e tantos outros ex-presidentes – personalidades respeitadas, mas ativos apenas nos momentos decisivos. Conselheiros da nação, sem cargos. Sarney seria visto como referência do político que, jovem, contestou as forças conservadoras de seu próprio partido; adulto, conviveu com o regime militar; mas, na maturidade, teve a coragem de se distanciar do autoritarismo e, diante das adversidades de Tancredo, teve a competência de conduzir o país no momento da máxima inflexão na segunda metade do século 20.

Mas preferiu a política à história. Escolheu o mandato de senador e a volta à presidência do Senado. Com isso, o Senado passou a ter um presidente maior do que o cargo, o que faz com que ele perca o gosto para enfrentar o dia a dia de suas atividades.

O problema do Senado é de todos, mas o primeiro culpado da crise é seu presidente, porque a ele cabe zelar pela credibilidade necessária da Casa. Seu discurso não analisa as causas da crise, não oferece propostas para superá-la, nem nos aspectos morais nem nos estruturais. Não propõe iniciativas para superar o descrédito do Senado. Uma das causas desse alheamento da crise é o fato do Presidente Sarney não demonstrar consciência da dimensão da crise que o Senado atravessa. Seu discurso passa a impressão de que se trata somente de um descontentamento momentâneo da opinião pública, inflada pela mídia, e em franco desrespeito à sua biografia. Essa visão resulta do fato de ele ter uma biografia maior que a política e que o cargo. O cargo vira uma sina.

Quem enfrentou cinco anos de presidência da República, em um momento tão grave e de difíceis mudanças, não consegue se dedicar a um desafio que parece menor. O resultado é um presidente que, além de estar amarrado a uma rede de forças que misturam interesses públicos com pessoais, não tem o necessário gosto para enfrentar as dificuldades, por ter uma biografia maior do que o cargo que ocupa. Daí sua falta de percepção do tamanho da crise.

A culpa é também de nós, demais senadores, que não encontramos o caminho para casar o Sarney ex-presidente da transição democrática com o Sarney presidente de um Senado em crise. Mas a culpa é, sobretudo, do presidente Sarney, que precisa vestir a camisa do cargo atual, guardando sua biografia para os historiadores. Por isso sua licença do cargo de Presidente por dois meses permitiria mais velocidade na apuração dos fatos e de forma acima de qualquer suspeita.

Cristovam Buarque é senador e professor da UnB.

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