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A sociedade do espetáculo
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Nesse clima de confusão e radicalismos extremos, é preciso lembrar que, como dizia Georges Bernanos, uma civilização não desmorona como um edifício, mas vai esvaziando-se pouco a pouco de sua substância até que não lhe reste nada mais do que apenas uma casca.

Para dar um exemplo recente, a respeitável agência de notícias Reuters informa que um cientista de Hong Kong desenvolveu uma “ginoide” – feminino de androide –, que é algo mais ou menos como uma boneca inflável que finge ter sentimentos. O fato levantou algum entusiasmo, mas a alegria durou pouco. Sophia, a boneca inflável e inteligente, tornou-se cidadã da Arábia Saudita, com direitos e deveres. Creio cá com meus preconceitos que Sophia terá mais deveres que direitos, mas isso não é da minha conta.

De qualquer modo, aventuras tecnológicas deste tipo já têm nome social: transumanismo. E as promessas não são poucas: do fim da calvície à visão para cegos; de surdos que ouvem a paralíticos que levantam e andam. Já não falamos mais do romantismo de corpos congelados até que surja a cura de uma doença incurável; tampouco de pílulas com microchips e alimentos sem glúten. O que nos prometem agora é a realidade artificial dos Übermenschen, que consiste num upgrade do homem, subtraindo todas as suas imperfeições e adicionando poderes superespeciais nunca antes vistos desde os Cavaleiros do Zodíaco.

É óbvio que a ciência, com sua inteligência artificial, trará benefícios para a nossa vida cotidiana. Também é óbvio que a imprensa sempre se entusiasmará com o lado mitológico e cinematográfico das descobertas científicas, criando expectativas que nunca serão satisfeitas e frustrações que nunca serão superadas. Mais óbvia, porém, é a incoerência de um homem imperfeito ter a pretensão de ligar na sua tomada de três pinos uma fabulosa e perfeitíssima criatura bivolt que pode melhorá-lo. Não há imperfeição mais perfeita que se iludir com a própria ilusão.

No fim das contas, parece que chegamos a uma contraposição de dois apocalipses literários que marcaram o século 20: 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Duas tentativas de descrever as catástrofes políticas alimentadas pelos devaneios ideológicos. Orwell preocupava-se com a supressão de liberdade gerada por Estados totalitários: com o intuito de garantir a igualdade entre os homens, muitos regimes fizeram todos iguais, embora alguns fossem mais iguais que outros, dependurando-se numa burocracia privilegiada que determinava as condutas permitidas pelo Estado.

Já Huxley se preocupava com algo um tanto mais sutil, e que atualmente parece muito mais perigoso: em vez de sermos dominados por uma tirania ideológica, somos drenados pela insignificância ao ponto de entrarmos num processo de desaculturação. Uma variante das invasões bárbaras, desta vez sem godos, visigodos ou Átila, o Huno; o barbarismo agora chega de forma pacífica e muito voluntária, por redes wi-fi, aplicativos e gadgets eletrônicos.

Enfim, já estamos vivendo o mal-estar da civilização apontado por Freud. Quando nada tem sentido, precisamos encontrar uma razão para nos mantermos de pé diante do tédio e do fardo da existência, como reclamava Flaubert. Nossa geração já não sabe mais conceber a vida para além do conforto frívolo, e jamais admite uma opinião contrária ao seu voluntarismo fanático pela busca do poder. Então, não resta muito mais que abraçar uma idolatria no meio do apocalipse iminente. Mas todo ídolo cobra sacrifícios. E no mundo do absurdo, onde todos têm razão, a vítima a ser imolada é sempre a nossa sanidade.

Diogo Chiuso é editor de livros.

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