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A tirania do mérito
| Foto: Pixabay

Michael Sandel é um filósofo exemplar: em uma época em que as humanidades são colocadas em questão, sua filosofia pública mostra que nosso mundo dominado pela técnica não deixa de ter necessidade de pensar as grandes questões. Seu curso Justiça, um dos mais populares de Harvard, disponibilizado on-line, se tornou um dos mais vistos na internet; o livro baseado no curso, Justiça: o que é fazer a coisa certa (2008), foi um grande sucesso, bem como o que lhe seguiu, sobre a moralidade no capitalismo, O que o dinheiro não compra (2012). Agora, em 2020, ele lança sua nova obra, A tirania do mérito, que já ganhou uma edição em português pela Civilização Brasileira.

Se no Brasil o debate a respeito da meritocracia entra no esquema maior da polarização entre esquerda e direita, sendo apresentado como uma discussão entre os defensores de um Estado liberal contra os proponentes de um governo assistencialista, nos EUA a importância do mérito é uma das poucas unanimidades entre democratas e republicanos. Por isso, mais que uma investigação pontual a esse respeito, o novo livro de Sandel é um mergulho nos fundamentos atuais da política americana.

A pandemia, diz Sandel, pegou os EUA desprevenidos. Não apenas pela emergência médica e pelos problemas logísticos a ela relacionados, mas também pelo clima de falta de confiança social e baixa solidariedade. Por isso, ele afirma, a saída para a crise não se fará apenas pelo conhecimento médico e científico, que tem conquistado grandes avanços, mas por uma renovação moral e política: é necessário repensar uma política do bem comum.

As causas mais profundas da crise política e moral, para Sandel, estão na tecnocracia liberal, que domina o discurso público, tratando questões ideologicamente contestáveis como se fossem um mero problema de eficiência econômica, e na retórica do mérito, usada para justificar a desigualdade crescente e a cada vez menor mobilidade social.

O ideal do mérito levou à intensificação da distinção entre vencedores e perdedores. Entre os vencedores gerou o orgulho desmedido; entre os perdedores, o ressentimento. A retórica da oportunidade, escreve Sandel, levou a uma política da humilhação. Por sua vez, a tecnocracia política trouxe a separação entre mérito e moral e a redefinição do bem comum, que passou a ser entendido não mais civicamente, mas em uma perspectiva econômica. A tecnocracia erodiu o projeto cívico, abandonando a preocupação com a cidadania e a solidariedade. Não existem mais cidadãos, mas consumidores, e as decisões cruciais não são mais tomadas diante da arena pública, mas nas agências administrativas e nos bancos centrais.

Para falar como Patrick Deneen, em seu Por que o liberalismo fracassou, a meritocracia é a nobre mentira (no sentido platônico) da elite mundial contemporânea, aquela que ela conta para si mesma para justificar sua posição. Mas o esforço individual é apenas um dos elementos que levam ao sucesso: o talento que tenho, argumenta Sandel, é uma questão de sorte, ainda que o seu desenvolvimento dependa do meu esforço. E também é uma questão de sorte que eu viva em uma sociedade que recompensa os talentos que eu tenho. LeBron James, por exemplo, só fez sua fama e fortuna no basquete porque esse é um esporte popular nos EUA. No entanto, a ideologia meritocrática ignora a arbitrariedade do talento e infla o sentido moral do esforço, que existe, mas não é condição suficiente para o sucesso.

Mas, se o ideal meritocrático se baseia em premissas falsas e leva à desestruturação da sociedade, qual seria a alternativa? Para Sandel, abandonar a meritocracia não significa desprezar o mérito, mas repensar a maneira como concebemos o sucesso e a vida em comunidade.

Em primeiro lugar, ele sugere que seja repensada a educação superior, em especial as universidades que formam as elites e que hoje são mecanismos de estratificação social, servindo menos para expandir a oportunidade que para consolidar o privilégio. Sua proposta: cotas para jovens de baixa renda; financiamento do governo para esses alunos; novos princípios de seleção que levem em conta até mesmo alguma espécie de sorteio a partir de uma classificação inicial; fortalecimento da educação cívica e sua expansão para além dos confins da universidade.

Em segundo lugar, Sandel fala em uma atenção ao trabalhador de classe média, cuja autoestima e condições de trabalho, nos tempos recentes, vem se deteriorando. Ele pede que a esquerda volte a falar em dignidade do trabalho e a fazer propostas de aumento salarial, políticas de seguro de saúde, cuidado para as crianças etc. Que ela combata a financialização da economia, se coloque contra a desregulação do setor financeiro, empreendida por Clinton, e que, em vez de encorajar a especulação, honre o trabalho produtivo. E, para a direita, que abandone a ortodoxia do liberalismo econômico e lute para que o trabalhador tenha condições de sustentar sua família. A prioridade não deveria ser bens de consumo baratos, mas empregos bons e dignos.

Ele também fala em um retorno ao ideal cívico do bem comum, no qual o trabalhador seja visto como um produtor, não como um mero consumidor, e que a contribuição para a sociedade não seja medida pelo salário, mas pelo valor moral de nossos esforços, o que envolve um juízo ético independente do mercado. Citando São João Paulo II, Sandel fala do trabalho como um caminho para que o homem se torne mais humano e um meio para que se ligue à comunidade em sua busca pelo bem comum. O ideal comunitário, não o mérito individualista, para Sandel, devia ser o princípio de consenso na política. É necessário que todos, não apenas os ricos e os poderosos, tenham condições de viver vidas decentes e dignas, exercendo suas habilidades no trabalho, recebendo respeito social, compartilhando uma cultura ampla de aprendizado e deliberando com seus concidadãos a respeito dos assuntos públicos.

Uma democracia só existe quando existe deliberação política em comum a respeito dos propósitos e os fins. Ela não requer a igualdade econômica, mas precisa que cidadãos dos diferentes meios se encontrem e compartilhem espaços públicos, como parques, escolas, bibliotecas, instituições de ensino.

Por fim, Sandel também defende que é fundamental o reconhecimento, para além do orgulho meritocrático, da contingência e da fragilidade que são partes inescapáveis da vida. As circunstâncias exteriores não estão plenamente sob o nosso controle e, por isso, o sucesso nunca é fruto apenas de nosso mérito. O reconhecimento da imponderabilidade da fortuna nos inspira a solidariedade diante do sofrimento dos outros e uma humildade profunda. Humildade esta que, talvez, deva estar no início de todos os nossos esforços.

O livro de Sandel não se aplica ipsis litteris à realidade brasileira. Em um país em que ponderam conchavos e negociatas, a meritocracia aparece como um ideal distante e desejável. Ainda que uma maior justiça meritocrática seja fundamental para o desenvolvimento nacional, Sandel nos mostra, em sua investigação, que ela não é o bastante e que, justamente nos lugares onde melhor foi implementada, mais manifestou seu fracasso. Para além da disputa individualista por cargos, status e poder, Sandel nos lembra: o que mais precisamos é de uma comunidade unida em torno da busca pelo bem comum.

Bernardo Lins Brandão é professor de Língua e Literatura Grega Antiga na UFMG.

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