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A Coronavac passará a fazer parte do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO).
Vacinação de crianças contra a Covid-19 começou no dia 14 de janeiro no Brasil.| Foto: Governo do Estado de São Paulo.

Ao tempo em que o país completou um ano do início da vacinação contra a Covid-19, iniciou-se a vacinação das crianças de faixa etária entre 5 a 11 anos. Da mesma forma como os demais temas que envolvem a pandemia, a questão referente à vacinação das crianças está cercada de polêmicas e de questões jurídicas a serem ao menos debatidas e, quiçá, resolvidas.

A obrigatoriedade de os pais vacinarem os seus filhos tornou-se uma questão que levantou inúmeras dúvidas em todos, sendo que a discussão acerca do papel dos pais na imunização das crianças passa necessariamente pelos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e, principalmente, pelo princípio do melhor interesse da criança.

O artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que o SUS “promoverá programas de assistência médica e odontológica” para prevenir enfermidades que afetem as crianças, bem como promoverá “campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos.”. Partindo destas disposições, o parágrafo 1.º do mencionado artigo determina que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Em tese, o descumprimento desta determinação legal caracterizar-se-ia como o descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, o que poderia levar à aplicação da multa prevista no artigo 249 do ECA.

O Supremo Tribunal Federal, no acórdão do Recurso Extraordinário com Agravo 1.267.879, de lavra do ministro Roberto Barroso, de 17 de dezembro de 2020, fixou, por unanimidade, a seguinte tese: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, estado, Distrito Federal ou município, com base em consenso médico-científico.

Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.

Veja-se que essa decisão da suprema corte é anterior à discussão atualmente vigente quanto à obrigatoriedade de os pais vacinarem os filhos contra a Covid-19. Entretanto, a tese acima fixada, no regime de repercussão geral, certamente será utilizada para nortear os debates com relação ao tema, na medida em que o posicionamento quanto à constitucionalidade do “caráter compulsório das vacinas que tenham registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico” está consolidado.

Especificamente sobre a vacina da Covid-19, o Ministério da Saúde incluiu as crianças no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO) e apontou que as vacinas estariam disponíveis para os pais que queiram vacinar os seus filhos. É nessa disposição de vontade dos pais que existe o atual debate – que também tem um aspecto jurídico – acerca do tema. Frise-se, quanto ao aspecto jurídico, que há efetivo ineditismo nesta discussão, sendo certo que apenas com o aprofundamento do tema e das decisões acerca dele encontraremos a sedimentação de uma linha a ser defendida por todos.

Por ora, com base na doutrina da proteção integral, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na tese fixada no Recurso Extraordinário com Agravo 1.267.879, é plenamente possível defender que os pais que não vacinarem os seus filhos poderão sofrer sanções previstas em lei – em regra, a aplicação de multa pelo descumprimento dos deveres do poder familiar. No tocante a eventual perda da guarda, entendo que esta situação está relegada a casos mais raros e com aspectos a serem analisados para além da simples não vacinação das crianças.

É possível, ainda, imaginar que a responsabilização dos pais poderá ser mais ampla caso a criança que não recebeu a imunização contraia a doença e evolua para casos mais graves. Neste cenário, há quem defenda que poderia haver a responsabilização criminal dos pais que não vacinarem os seus filhos, nos casos em que as crianças contraiam formas graves da Covid-19 e até mesmo evoluam para óbito por complicações decorrentes da mencionada enfermidade. Quem defende essa linha aponta que os pais poderiam ser responsabilizados por lesão corporal, lesão corporal seguida de morte e até mesmo homicídio culposo.

Todavia, não se pode olvidar que há matéria de defesa para aqueles que optarem por não vacinar os seus filhos, a começar pela não inclusão, por ora, da mencionada vacina no Plano Nacional de Imunização (PNI). Ademais, o próprio Ministério da Saúde destacou que a vacinação não era obrigatória e dependeria do consentimento dos pais.

É certo, ainda, que o momento em que vivemos é bastante peculiar, sendo que o processo de aprovação das mencionadas vacinas pelas autoridades sanitárias mundiais foi realmente mais rápido do que em relação a outras vacinas.

Nesse cenário, bastante conturbado, o ministro Ricardo Lewandowski proferiu decisão na ADPF 754, promovida pela Rede Sustentabilidade, determinando que o Ministério Público adote as medidas necessárias quanto à vacinação de menores contra a Covid-19. Ora, inobstante o caráter político de todo esse debate, diante da posição da Presidência da República acerca do tema, é inegável que o ministro apenas lembrou ao Ministério Público acerca de suas competências previstas em lei. Assim, independentemente desta decisão, os membros do Ministério Público e até mesmo do Conselho Tutelar já poderiam adotar medidas quanto à vacinação contra a Covid-19 em crianças.

Vale ressaltar, ainda, que, sob o prisma da hierarquia das normas dentro do nosso ordenamento jurídico, indubitavelmente a previsão do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente é hierarquicamente superior a qualquer decreto, portaria ou orientação do Ministério da Saúde.

Como não há unanimidade acerca do assunto, é certo que a comunidade jurídica irá debater a questão no bojo de diversas ações judiciais que devem surgir pelo país e, eventualmente, o tema, devidamente debatido e amadurecido, retornará ao Supremo para definição pela maior corte do país. Até lá, a vacinação terá avançado e certamente teremos mais dados e estudos, tanto quanto sobre o vírus da Covid-19 e sua nova variante ômicron, quanto sobre o próprio imunizante.

Na própria decisão proferida pelo ministro Barroso foi ponderado que, inobstante a liberdade de consciência tenha proteção constitucional, nenhum direito é absoluto e seus limites estão nos demais direitos e valores constitucionais. Sob essa premissa, naquele caso, o ministro considerou que a liberdade de consciência precisava ser considerada em conjunto com o direito à vida e à saúde de todos, bem como com a doutrina da proteção integral, prevalecendo o melhor interesse da criança e seu direito à vida e à saúde. É partindo dessa análise de ponderações de direitos fundamentais que precisa ser analisada a questão da vacinação e sua obrigatoriedade para o retorno presencial às aulas, ou se eventualmente será feita ao menos uma verificação pelas escolas daquelas crianças e adolescentes que foram ou não imunizados. Aqui, o debate será extremamente intenso, na medida em que há confronto entre o direito de liberdade de consciência, o direito à vida, o direito à saúde e o direito à educação, tudo isso analisando-se sob a premissa tanto do direito individual quanto do direito coletivo.

É preciso avançar e amadurecer a discussão, tanto quanto sociedade acerca da pandemia e da vacinação, mas também como juristas acerca das normas que regem essa questão.

Assim, por ora, não é possível dar uma palavra final acerca da obrigatoriedade da vacinação diante do ineditismo do debate sobre o tema e das teses que podem ser defendidas tanto para defender a obrigatoriedade da vacinação quanto para garantir a liberdade de decisão pelos pais. Por outro lado, há de se considerar que o surgimento de novas variantes e as mais diversas ondas do vírus fazem com que a sociedade viva a novela interminável dos movimentos de aberturas e fechamentos do comércio, de atividades e eventos coletivos, da possibilidade de maior ou menor convívio social de forma presencial, seja esse convívio a título profissional ou por lazer. É nesse contexto que a vacinação ampla e irrestrita ganha uma indiscutível relevância.

Particularmente, entendemos que a vacinação contra a Covid-19, tanto de adultos quanto de crianças, é um pacto coletivo a que todos devemos aderir a fim de assegurar o efetivo combate à pandemia. Nesse passo, em que pese apontarmos que, em termos jurídicos, há defesa para os pais que optarem por não vacinarem os seus filhos, precisamos pontuar que, no nosso entendimento, a vacinação de toda a população é o caminho para superarmos esse momento difícil que vivemos. Vacina sim!

Greyce Caroline Suendrecki dos Santos Jacomassi é advogada especialista em Direito Aplicado e em Desenvolvimento Gerencial, e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Comissão da Advocacia Colaborativa da OAB-PR. Louise Rainer Pereira Gionédis é advogada especialista em Direito Societário, mestre em Direito Econômico e Empresarial e em Cooperação Internacional.

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