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Abastecer um cartão transporte, a odisseia das ruas curitibanas
| Foto: Divulgação / Prefeitura de Curitiba

Já que estava no centro de Curitiba, tentei reabastecer o cartão avulso do transporte público. Na condição de passageiro esporádico em ocasiões aleatórias, não seria bom ficar desprevenido, hoje em dia nem toda linha aceita dinheiro.

O rapaz da banca informa, se desculpando, que só poderia vender depois do meio-dia, o sistema não abria pela manhã, infelizmente. Não seja por isso, pensei, atualmente se faz tudo pela internet, realimento este cartão num piscar de olhos.

Não era tão simples. Precisava preencher cadastro, registrar senha, para só então gerar boleto com tarifa majorada caso teimasse em recolher noutro banco além do indicado na fatura. Se tudo desse certo restaria outro calvário, aguardar 72 horas, três longos dias para a disponibilidade dos créditos.

Navegando mais um pouco, descobri outras inconveniências do meu cartãozinho avulso, dentre elas a impossibilidade de reembolso, de usufruir a integração temporal anunciada recentemente como uma grande conquista da população. Nem poderia sustá-lo em caso de extravio ou roubo.

E eu acreditando que tanta burocracia se revertesse em benefício ao cidadão.

Voltando embora, mal cheguei ao ponto, aparece uma mulher apressada, perguntando o horário da condução, e o painel informativo não trazia o que ela precisava. Em seguida, propôs que eu lhe vendesse uma passagem. Exibiu o valor trocadinho. Arisco, questionei a legalidade da transação. Respondeu que a operação era permitida, sim, já havia socorrido outros usuários em urgência semelhante e também tinha sido acudida na mesma dificuldade outras vezes. Expressou revolta: enquanto uma tal de Urbs dorme, a gente tem de se virar. Falou um pouco de si mesma, era viajada, conhecia o estrangeiro. Descreveu saudosa as facilidades para comprar tíquete noutros países, inclusive com desconto vantajoso.

Ia passando a quantia, invoquei dúvida para me esquivar do negócio. Não tinha certeza de quantos créditos restavam, na ida só lembrei de conferir o saldo após girar a catraca e a luzinha do visor ficar vermelha. Propus que buscasse ajuda com outra pessoa, melhor não se arriscar comigo, vai que na hora restasse apenas um passe, ou nenhum.

Uma senhora se aproxima compondo a fila, mas era isenta e não poderia transferir para terceiros o que recebeu de graça. Restou como alternativa para a mulher apressada chamar uma corrida pelo aplicativo do celular.

A senhora do passe livre, de aparência jovem, comenta: não é à toa que esses ônibus pequenos sem cobrador vivem batendo lata vazios. Só ando neles porque não pago, senão ia de Uber que sai praticamente o mesmo preço.

Decidi pôr a boca no mundo, anunciei a bravata ali mesmo na praça, que chegando em casa iria escrever para a prefeitura, onde já se viu criar tanto empecilho, o povo sofria. Aproveitei o aumento da plateia com a chegada de um idoso se apoiando em bengala, partilhei a própria experiência malograda de querer crédito no cartão antes do almoço.

O ancião era igualmente isento, sepultando a última esperança da mulher apressada em viajar conosco. Ancorado na bengala envernizada, mostrou-se solidário ao meu drama, para em seguida, de bengala em riste, resmungar dúvida sobre a eficiência do tal comunicado, o prefeito tinha mais o que fazer. Rebati, endereçaria a queixa aos subordinados, certamente haveria algum assessor especialista em atender o eleitorado insatisfeito.

Enfim o coletivo encostou. Saí de lado, quis entrar por último, conferir se tinha saldo. Lá adiante, já esquecido da promessa em denunciar descaso corporativo, levei uma considerável cutucada na panturrilha. Era a bengala do velho. Apontando o Palácio 29 de Março e o canteiro florido, deu seu último recado, definitivo, detonando a minha iniciativa de lamúria: lá dentro despacha o alcaide, aqui fora mora um bando de quero-quero. Até as aves de rente ao chão já sabem o que você pretende contar para os homens deste prédio.

Florentino Augusto Fagundes é professor de matemática da PUCPR e escritor.

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