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Um dos direitos mais festejados dentre os assegurados pela Constituição Federal brasileira é o que garante o acesso à Justiça, inclusive sua gratuidade para aqueles que não disponham de recursos para pagamento das custas judiciais. A grande demanda pelos serviços judiciais gratuitos – como aqueles ofertados pelas faculdades de Direito, que pressupõem a realização de uma triagem que garante que as causas mais urgentes e relacionadas ao público mais necessitado tenham a prioridade de atendimento – revela o estado de carência de grande parte da população em relação aos seus direitos. Paralelamente, quem atua nas lides judiciárias sabe que há um grande número de ações que são propostas por advogados particulares que invocam a gratuidade de custas. Há, ainda, ações que por sua própria natureza, prescindem do pagamento de custas para qualquer interessado, como é o caso da ação popular, a qual, em princípio, se apresenta como um mecanismo de controle do cidadão em relação a condutas abusivas ou delituosas dos agentes públicos, e as causas de pequeno valor e complexidade, apresentadas perante os juizados especiais.

Provavelmente, todo aquele que chegou até aqui na leitura deste artigo aprova e aplaude a existência destes mecanismos e a efetivação de um direito individual. Porém, como ocorre de maneira bastante corriqueira quando um intérprete tem a pretensão de ir um pouco além das aparências, percebe-se que toda a oferta de gratuidade precisa ser pensada a partir dos benefícios e malefícios que a acompanham – a existência de um risco potencial, assim como a perspectiva de se ter algo a perder pode nortear a conduta do agente e as suas opções.

Aquele que faz uso de uma medida judicial sem o pagamento de custas, também fica isento do pagamento dos honorários do advogado que o representa. Logo, não corre riscos, pois, caso tenha a demanda rejeitada, não sofrerá qualquer sanção, nem terá um ônus financeiro como resultado do pedido não confirmado. Conheci uma situação em que um site incitava pessoas a ajuizarem demandas infundadas contra administradores públicos sob o argumento de: "você não tem nada a perder, pois não precisa pagar nada pela causa; imprima e nós protocolamos". Também já pude atuar em inúmeras causas propostas contra pessoa jurídica de direito público, com pleitos absolutamente mal formulados e pessimamente instruídos, sempre por meio de advogados particulares e com pedido de gratuidade, sob a alegação de pobreza, de próprio punho, do interessado – da forma como garantido na lei respectiva. Vi, ainda, profissionais ciosos e respeitados, serem demandados em processos nos quais são invocados danos morais que – vejam só o preço da moral! – coincidem com o valor máximo admitido para apreciação nos juizados especiais. Tudo isso grátis.

Grátis para quem? Certamente que ao pensar na acessibilidade à Justiça, o constituinte teve como premissa situações muito mais sérias do que um interesse partidário, a gana de enriquecimento fácil contra os cofres públicos ou a sedução da palavra de um advogado que já trabalha com a possibilidade de "levar algum" caso a aventura jurídica chegue a um bom resultado. A gratuidade é perigosa quando não há suficiente formação ética ou moral que controle o desejo de proveito injustificado, quando os valores corroeram todo juízo crítico de avaliação do comportamento pessoal. Grátis para quem? Sempre haverá alguém pagando pela gratuidade do outro, quando se está tratando da gratuidade processual. Basta pensar na mobilização de dezenas de pessoas na busca dos argumentos de defesa necessários ao afastamento da pretensão abusiva: há o(s) réu(s), seu(s) advogado(s) – normalmente pagos, porque nenhum advogado vai se propor a trabalhar de graça quando tem no outro pólo alguém que não teria condições de arcar com uma eventual condenação, salvo ações que envolvam condição de Estado, estas sim, sempre legítimas em sua gratuidade – testemunhas, estagiários, funcionários do cartório, juízes, mais papel, eletricidade, energia humana. Alguém está pagando pela gratuidade. Se os direitos são legítimos, fica clara a adequação do sistema. Se há um aproveitamento do benefício meramente pela possibilidade de uma vantagem potencial e não muito bem justificada, está-se proliferando perdas e abusos, sob o manto (simpático) de um direito constitucional individual.

Sugestão: gratuidade somente para pessoas comprovadamente necessitadas em ações que envolvam Estado, como divórcio e paternidade. Nos demais casos incidência de depósito de custas proporcionais (mínimas) ao rendimento ou benefício que serão revertidas ao cartório e à parte contrária na hipótese de rejeição da demanda, como forma de estímulo à responsabilidade individual.

Marcia Carla Pereira Ribeiro é professora doutora de Direito na UFPR e PUCPR, diretora do Programa de Pós-Graduação da PUCPR e procuradora do estado do Paraná.

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