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Um homem segura uma bandeira do movimento Black Lives Matter enquanto os ativistas do Charlotte-Uprising interrompem o tráfego,  em 27 de agosto de 2020 no centro de Charlotte, Carolina do Norte.
Imagem ilustrativa.| Foto: Octavio Jones/2020 Getty Images

O ser humano sempre optou pela busca da verdade. Aliás, ele vive tensionado por isso, porque não aceita a indigência desumanizante imposta por ideias ou filosofias desconstrucionistas e que, no lugar da busca pela verdade, propõem o mais puro ceticismo, pessimismo ou mesmo o nada como resposta aos fins últimos do homem. A história da humanidade está aí para nos ensinar muito a respeito.

Hoje, no entanto, existe um movimento global que compreende uma nova “justiça social” e movimentos identitários políticos que compõem uma nova realidade. Alguns grupos de liderança secular de elite, sem interesse em tradições ou culturas, como, por exemplo, a Open Society Foundations, de Geroge Soros, são responsáveis por corporações, governos, universidades, mídia e instituições profissionais que desejam estabelecer o que pode ser chamado de civilização global construída sobre uma sociedade de mercado e guiada pela ciência, tecnologia, valores humanitários e ideias tecnocráticas sobre a organização da sociedade.

Nessa visão de mundo de elite, não há espaço para sistemas de crenças “ultrapassados”, fundamentos bioéticos ou religiões bimilenares, porque tudo isso atrapalha as tentativas de anulação – ou correção – das bases naturais sobre a vida e a pessoa humana, como o casamento e a família, sempre alvo de ataques desses grupos.

Novos movimentos sociais baseados em matrizes identitárias artificiais ou em sistemas de pura ideologia política assumem as pautas sociais e passam a forjar uma novilíngua. Surgem termos como “justiceiro social”, “cultura woke”, “políticas de identidade isso ou aquilo”, “interseccionalidade”, “ideologia sucessora”, cujo propósito comum é o de explicar o mundo atual, oferecendo um sentido ou sentimento de pertença a uma comunidade, em suma, um propósito último de vida.

A título de exemplo, tomemos a “cultura woke”, cuja “postura de alerta” (Staywoke!) propõe uma espécie de “pauta de salvação”. O raciocínio seria o de que podemos não saber de onde viemos e para onde vamos, mas sabemos que temos interesses em comum com aqueles que compartilham nossa cor de pele, nossa identidade de gênero ou nossa posição institucional na sociedade.

Também sabemos que nosso grupo está sofrendo e isolado sem culpa nossa. A causa de nossa infelicidade coletiva é que somos vítimas da opressão de outros grupos de nossa sociedade. Contudo, somos “libertados” e podemos achar a redenção por intermédio da luta constante contra nossos opressores, travando uma batalha pelo poder político e cultural em nome da criação de uma sociedade igualitária.

O Black Lives Matter (BLM) é um exemplo pronto e acabado desse raciocínio, assim como a multidão de seguidores da Greta Thunberg que, aos gritos, costuma puxar as orelhas de adultos “insensíveis” ao problema climático em suas conferências em academias e universidades.

Dessa forma, o mundo é visto como uma grande divisão entre “inocentes e culpados”, “aliados e adversários” ou “nós e eles”, numa espécie de imenso Fla x Flu, que diagnosticaria as demandas e sofrimentos sociais e as tendências de discriminação e de exclusão de oportunidades em comunidade.

Nessa visão onicompreensiva da realidade, o que me parece evidente é a criação de novas formas de divisão social, discriminação, intolerância e injustiça. O problema central desses movimentos sociais é uma questão teórica de antropologia filosófica: reduzir o significado de ser humano a qualidades essencialmente físicas ou sociológicas, como cor da pele, sexo, noções de gênero, origem étnica ou posição social.

E como efeito desse problema teórico, a santíssima trindade da maioria destes movimentos – diversidade, inclusão e igualdade – tem provocado, sobretudo na educação e na economia, a adoção da raça, etnia, gênero ou preferência sexual como a característica fundamental que define cada pessoa. Esses itens passam também a definir as pautas das principais políticas públicas e o modo de resolução dos conflitos sociais, sejam coletivos ou individuais, no sistema de justiça comunitário.

Semelhante ao marxismo, tais movimentos mudaram a mecânica da luta de classes pela luta das identidades. Seu objetivo claro é a transformação da cultura e da sociedade de acordo com seus próprios postulados antropológicos. Eles querem desmantelar, a todo custo, a dita civilização ocidental, porque veem nela um sistema genuinamente opressor.

Um bom exemplo disso é a “cultura do cancelamento”: em favor do fim da “mentalidade escravocrata inconsciente” que toma conta da maioria dos indivíduos de uma sociedade, é preciso “cancelar” Monteiro Lobato, boicotar fotos em que um sujeito aparece tomando um copo de leite puro ou, ainda, envergonhar aqueles que, racionalmente, discordam disso tudo.

Já fui vítima disso quando discordei dos métodos políticos do BLM, alertando que, ao contrário do movimento dos direitos civis dos negros na década de 1960, ele não busca corrigir a consciência e a cultura americanas com espírito construtivo e dialógico. Fui chamado de “capitão-do-mato”, o que, evidentemente, vindo dessa turma, foi recebido como um elogio.

Outro exemplo é o feminismo, que começou lutando pela igualdade civil e profissional para as mulheres, o que foi ótimo. Mas com o tempo o movimento prosseguiu em direção a campos em que as diferenças sexuais não fazem tanta diferença, como a política e a cultura. Foi mais um passo na tentativa de transformar mulheres e homens em criaturas andróginas, cujos papéis – no entender desses grupos – devem ser semelhantes e cujas emoções e ações idênticas. A sociedade ocidental aloca enormes recursos para tentar igualar homens e mulheres neste nível e já se disse, inclusive, que existe um projeto de igualdade sexual que pretende tornar os homens socialmente mais parecidos com as mulheres – avessos ao risco, cautelosos e sociáveis – e as mulheres mais parecidas com os homens – levando-as sexualmente à promiscuidade, egocêntricas e menos emotivas.

A ideologia de gênero caminha na mesma trilha equivocada. É cada vez mais frequente o diagnóstico de um menor com “disforia de gênero”. Durante décadas, os psicólogos trataram a disforia com a chamada "espera vigilante" (watchfulwaiting), um método psicoterapêutico que busca encontrar a fonte da disforia de gênero de um indivíduo, reduzir sua intensidade e, finalmente, ajudá-la a se sentir mais confortável sexualmente em seu próprio corpo.

Todavia, na última década, a “espera vigilante” foi trocada pelo “cuidado afirmativo” (affirmativecare), que pressupõe que os menores já sabem o que é melhor para eles. Os defensores dessa teoria exortam os psicólogos a corroborar a crença de seus pacientes de que estão “presos” no corpo errado. A família, então, é pressionada a ajudar o menor a fazer a “transição” para uma nova identidade de gênero; depois, as pressões recaem sobre os pais para começarem com os passos concretos para ajudar seus filhos no caminho para a “transição para o corpo certo”.

O que chama a atenção é a completa mistificação de tudo o que precisa ser feito para a transição sexual, a negação do que ela representa, os riscos colaterais – como a automutilação, a depressão e o suicídio. Igualmente, não se fala dos obstáculos que existem para os que depois percebem que não estavam num “corpo errado” e, por isso, desejam voltar pela “detransição” (retorno ao próprio sexo biológico). Assim, a fluidez de gênero e o igualitarismo sexual tornam-se a nova base antropológica da identidade sexual e, como efeito, a sociedade torna-se um grande campo de reeducação ideológica. O mesmo efeito, mas por outros filtros antropológicos artificiais, poderia ser dito dos demais movimentos.

Existe uma estreita relação entre os princípios antropológicos da democracia moderna e tais movimentos. Somos testemunhas de uma visão de democracia que, em seu delírio de liberdade sem limites, resolveu ficar bêbada de tanta liberdade e, assim, sonha em atingir as alturas existenciais que o desenvolvimento tecnológico viabilizou materialmente. Mas, infelizmente, esses movimentos perderam a verdade antropológica sobre a pessoa humana. É isso que explica seus condicionamentos extremistas e sua abordagem severa, intransigente e implacável no campo da práxis política e social.

Como esses movimentos negam a verdade da pessoa humana e propõem versões mutiladas de antropologia filosófica – não importa quão bem-intencionados possam ser –, ao cabo não podem promover uma prosperidade humana autêntica. Pelo contrário, como já se vê em vários países, provocam novas formas de divisão, discriminação, intolerância e injustiça.

É preciso resgatar uma antropologia filosófica que permita um fecundo diálogo entre natureza e liberdade, bem ao contrário das antropologias que permeiam os postulados dos movimentos dessa nova cultura a que assistimos e que nos prometem, pela oposição entre liberdade e natureza, um “admirável mundo novo”.

André Gonçalves Fernandes, Post Ph.D., é juiz de Direito e professor- pesquisador.

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