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| Foto: Ruan de Witt/Wikimedia Commons

“Graças a Deus surgiu o al-Haji Mohammed Hitler” (Amin al-Husseini, mufti de Jerusalém)

Em setembro de 2014, tive a oportunidade de visitar Sachsenhausen, o primeiro campo de concentração nazista, fundado em 1936, e situado a menos de uma hora de carro de Berlim. Preparara-me de antemão para uma jornada pesarosa, é claro, mas não podia prever a sensação de angústia física, de aperto no peito, que viria a experimentar no local. Talvez fosse minha ascendência judaica falando (ou gritando) mais alto.

Passava um pouco das 10 horas de uma manhã com céu encoberto, lembro-me bem, quando cruzei o portão de entrada, no alto do qual se lia a célebre e infame inscrição Arbeit Macht Frei (“O trabalho liberta”). Não havia então muitos visitantes, e só o som do cascalho pisado rompia o silêncio ambiente, além de um ou outro corvo a crocitar. Eu estava havia menos de cinco minutos ali, onde, felizardo, entrara por livre e espontânea vontade, e já tinha vontade de ir embora. O horror, a tristeza e a ignomínia pareciam incrustados em cada canto do terreno.

Ali, mais de 70 anos antes, num dia de verão de junho de 1942, os prisioneiros judeus do barracão 38 foram acordados aos berros pelos guardas, que os mandaram entrar em fila. Era dia de visita de oficiais das SS, que levavam consigo quatro convidados especiais. O diplomata Fritz Grobba, expert nazista em Oriente Médio e principal contato do Reich com os seus aliados árabes, vinha havia muito destacando a importância do evento. Tudo tinha de estar perfeito, e ninguém menos que Heinrich Himmler, chefe e mentor das SS, vistoriou pessoalmente o campo dias antes.

A aliança entre o nazismo e o nacionalismo árabe-palestino teria um peso considerável na opção pelo genocídio

Desde maio de 1941, Sachsenhausen tornara-se sede de um novo projeto nazista, apelidado de “Estação Z”. A escolha da última letra do alfabeto carregava um simbolismo macabro: tratava-se de marcar o fim da linha para os judeus. Nos anos anteriores, os nazistas vinham testando uma série de métodos para exterminá-los: desde os enforcamentos individuais, passando aos fuzilamentos coletivos, ainda não se havia achado a fórmula ideal, rápida e eficaz. Foi em 1941 que a tecnologia do assassinato em massa atingiu o seu ápice, com a criação das câmaras de gás. Em Sachsenhausen, elas haviam sido instaladas junto com quatro fornos crematórios destinados a eliminar os cadáveres. Os fornos estão lá até hoje. Vi com os meus próprios olhos.

Em maio de 1941, 250 judeus do campo haviam sido mortos por ordem de Himmler. Era um teste. Quando os quatro convidados árabes das SS ali chegaram, portanto, o projeto dos campos de extermínio já estava bem avançado. A meta era criar as suas próprias “estações Z” no Oriente Médio, objetivo revelado em carta de janeiro de 1941, enviada por Amin al-Husseini, o “grande mufti de Jerusalém”, a Adolf Hitler. O líder nacionalista árabe-palestino pedia a ajuda de Hitler para lidar com a “questão judaica” em suas terras, assim como vinha sendo feito na Alemanha.

Há alguma controvérsia entre historiadores sobre a identidade dos quatro convidados árabes, mas especula-se que o próprio al-Husseini fosse um deles, juntamente com Rachid Ali al-Kailani, ex-dirigente iraquiano, além de dois assessores, uma para cada líder islâmico. Mas, estivera ou não presente naquele dia, o fato é que al-Husseini era o principal aliado islâmico dos nazistas. E não apenas isso. Desde o início sempre muito próximo a Hitler, que o tinha em alta conta, ele acabou sendo um dos responsáveis por precipitar o projeto de uma “solução final” para os judeus.

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Com efeito, a aliança entre o nazismo e o nacionalismo árabe-palestino teria um peso considerável na opção definitiva pelo genocídio. Os nazistas ainda cogitavam um esquema de deportação em massa dos judeus e, diante da recusa de outros países em recebê-los, a Palestina figurava como uma das poucas opções restantes. O problema para os nazistas é que isso irritaria profundamente os seus aliados islâmicos. Preocupado, portanto, em não abalar aquela relação mutuamente frutífera, em 1941 Hitler decidiu de vez pelo Holocausto. E, nesse momento dramático, al-Husseini esteve presente.

Em novembro daquele ano, o grande mufti de Jerusalém teve uma recepção de gala em Berlim. Foi hospedado no luxuoso Palácio de Bellevue, hoje residência oficial do presidente, situado no extremo ocidental do belíssimo Tiergarten. Recebeu a quantia de alguns milhões de dólares em valores atuais, obtida do ouro roubado dos judeus enviados aos campos de concentração. Como escritório de trabalho, requisitou um apartamento expropriado de um proprietário judeu, no que foi prontamente atendido. E, de brinde, ganhou ainda uma bela suíte no hotel Adlon, onde recebia visitantes ilustres e era paparicado por altos quadros do Reich, dentre os quais o ministro de Relações Exteriores Joachim von Ribbentrop.

Amin al-Husseini foi o primeiro não alemão a tomar conhecimento dos planos para a “solução final”, antes mesmo que fossem oficialmente apresentados por Hitler na Conferência de Wannsee. Adolf Eichmann em pessoa foi o responsável por lhe explicar os detalhes. Al-Husseini ficou exultante, solicitando a Eichmann um expert que o acompanhasse a Jerusalém e o ajudasse a instalar os campos de extermínio e as câmaras de gás por todo o Oriente Médio. A visita da delegação árabe a Sachsenhausen fazia parte desse contexto.

As ruas de várias cidades ocidentais serviram de palco para as costumeiras manifestações islâmicas de ódio aos judeus e a Israel

Ainda hoje experimentamos os efeitos de toda aquela comunhão macabra de interesses. Afinal, com a exceção de manifestações episódicas e universalmente condenadas de uns poucos neonazistas na Europa e nos Estados Unidos, o Oriente Médio foi o único lugar do mundo em que os aliados dos nazistas triunfaram, e onde o projeto de extermínio dos judeus continua sendo declarado abertamente, sob o olhar omisso, quando não cúmplice, de organizações internacionais, ONGs e milhares de ativistas pró-Palestina espalhados pelo mundo, em especial nos centros de formação e difusão de opinião (universidade, imprensa, show business etc.).

Seis décadas depois, dias após o presidente norte-americano haver consagrado Jerusalém como a capital de Israel, ordenando para lá a transferência da embaixada americana no país, as ruas de várias cidades ocidentais serviram de palco para as costumeiras manifestações islâmicas de ódio aos judeus e a Israel. Berlim, antiga sede do Reich, voltou a abrigar anseios genocidas, em meio a bandeiras israelenses incendiadas e gritos de “morte aos judeus”. Dando continuidade a uma longa história, os velhos aliados dos nazistas lá estavam, ainda e sempre obcecados com a “solução final” para a “questão judaica”.

Curiosamente, todavia, não se vê na grande imprensa mundial associações desses eventos com o nazismo. Ao contrário, são Donald Trump e demais “nacionalistas” contemporâneos pró-Israel (como os membros do partido alemão AfD, por exemplo) quem têm recebido indiscriminadamente a pecha de nazistas islamofóbicos sempre que demonstram preocupação com a imigração irrestrita de muçulmanos para os seus países, muito embora os nazistas originais fossem precisamente o oposto: islamófilos convictos.

Ainda que os fatos não cansem de justificar aquela preocupação (no Reino Unido, por exemplo, mais de 80% dos casos recentes de violência sexual contra mulheres foram cometidos por imigrantes muçulmanos), o establishment midiático ocidental segue tratando-a como monstruosa, uma inequívoca demonstração de intolerância racial e, no limite, de nazismo. Colocando toda a responsabilidade pelo conflito no Oriente Médio nas costas de Trump e Netanyahu, nossos jornalistas, intelectuais e especialistas televisivos parecem não ligar muito para o que dizem e fazem os legítimos herdeiros e verdadeiros continuadores do projeto nazista. Como sugere David Horowitz, parece mesmo haver uma estranha “aliança profana” entre a intelligentsia progressista do Ocidente e o islamismo radical, como a que houve, no passado, entre este e o nazismo.

Flavio Gordon, doutor em Antropologia, escritor e tradutor, é autor de “A Corrupção da Inteligência: Intelectuais e poder no Brasil”.
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