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“Já estou indo aí; estou terminando de jogar Xbox com um amigo”, meu filho gritou do seu quarto. “Quem é seu amigo?”, eu quis saber. “Um cara chamado Scuzzball”, foi a resposta. “Ah, e qual o nome verdadeiro dele?”, prossegui. “Não tenho a mínima ideia”, respondeu, já meio incomodado.

“Mas de onde ele é?”, insisti. “Algum lugar do Canadá, acho… não, pera, acho que é na França. Não sei mesmo. Bom, não faz diferença, porque Scuzzball acabou de sair do jogo e foi substituído por um bot.” “Puxa, que pena. Seu amigo foi substituído por IA?”, tentei ser solidário. “Não faz mal, pai, isso aí rola o tempo todo! O jogo continua.”

A indiferença do meu filho em relação à disputa com uma pessoa ou um bot, na verdade, é bem típica dos jogadores de videogame de hoje em dia. Eles se referem uns aos outros como “amigos”, mas, para mim, os laços que os unem são bem tênues. Não vejo, de forma alguma, como o tal de Scuzzball e meu filho podem ser amigos de verdade, e isso me preocupa. Fico imaginando se a experiência pré-internet da amizade cara a cara, que eu conheci, vai se perder para nossos filhos, a geração pós-internet. E não sou o único.

A amizade é uma parte importante de nossa compreensão de uma “vida boa” e remonta ao início da história humana. O Épico de Gilgamesh, que talvez seja a fábula mais antiga que se conhece, escrita há 4 mil anos, é meio que um bromance entre Gilgamesh e seu querido Enkidu. A Bíblia também ressalta o valor da amizade na história de Noemi e Rute, revelando a grande lealdade e devoção desta, apesar da ausência de laços de sangue entre as duas.

As relações de prazer e interesse são formadas com a mesma facilidade com que são abandonadas

A cada ano, uma fatia cada vez maior da nossa vida acontece no espaço digital. O adolescente médio passa até nove horas por dia on-line; meus alunos, calouros universitários, me contam que chegam a passar doze, já que quase todos os trabalhos de casa agora estão on-line. De acordo com um relatório do Pew de 2018, quase 90% dos integrantes da faixa entre 18 e 29 anos usam as redes sociais. Em 2016, a Academia Norte-americana de Pediatria divulgou uma nova política, com o alerta: “A criança que pratica excesso de mídia on-line corre o risco de desenvolver o uso problemático da internet, e aquela que joga videogames por muito tempo pode acabar sofrendo de um transtorno compulsivo.” Até o Vale do Silício está ficando cético em relação à utopia digital: 32% dos profissionais de tecnologia hoje acreditam que esse aspecto da vida afetará nosso bem-estar mental na próxima década.

Por volta de 2005, as pessoas diziam que o número médio de grandes amizades caíra de três para duas; ao fim de um estudo de 2006, quase 25% dos pesquisados disseram não ter alguém em quem pudessem confiar de verdade. Análises mais recentes sugerem que a tendência de isolamento continua, enquanto a intimidade entre os adolescentes é substituída pela eficiência.

A perda dessa proximidade, entretanto, não parece ser problema para os jovens que cresceram on-line; eles afirmam se sentir socialmente apoiados por grandes redes de “amigos” que raramente ou nunca veem cara a cara. Receber “curtidas” e outras formas de validação digital de grandes públicos só faz reforçar seu constante autocompartilhamento.

Mas será que esses jovens sabem o que estão perdendo? E será que isso importa?

O isolamento social certamente cresceu no Japão, onde meio milhão de jovens vivem como “hikikomori”, ou reclusos que não saem de casa. E a solidão no Reino Unido aumentou a ponto de o governo criar um ministério para lidar com a questão. Segundo uma nova pesquisa, 86% dos norte-americanos e britânicos acham que o “uso exacerbado da tecnologia” está contribuindo para esse retraimento.

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Algumas das obras filosóficas mais antigas a respeito da amizade são de autoria de Aristóteles, que observou em seu Ética a Nicômaco que as relações de prazer e interesse são formadas com a mesma facilidade com que são abandonadas porque esses laços são muito tênues; já a amizade verdadeira, profunda, é quando você gosta da pessoa pelo que ela é, não por causa de qualquer benefício que venha a obter com essa relação. É um relacionamento altruísta. E você só pode ter dois, no máximo três amigos assim, porque eles exigem muito tempo, dedicação e esforço, com uma participação constante na vida um do outro. De certa forma, você tem de ajustar seus horários aos dessas pessoas e fazer sacrifícios um pelo outro.

Pessoas que estudam ou trabalham juntas também podem se tornar amigas, da mesma forma que membros de equipes esportivas e grupos musicais, cônjuges (com sorte), integrantes de associações religiosas ou militares, e por aí vai. Esses exemplos sugerem que a amizade precisa de três critérios para se concretizar integralmente: experiência compartilhada, lealdade e objetivos comuns, ou conexão mental.

Mas e na esfera digital? Nossos “amigos” on-line – seja o Scuzzball ou o camarada do Facebook que você nunca viu pessoalmente – satisfazem o critério da intencionalidade, porque nos comunicamos extensivamente mediante a linguagem e relatamos uns aos outros objetivos de longo prazo, decepções, crenças e outras facetas da vida mental.

O fato é que compartilhamos experiências com uma pessoa on-line, mas elas parecem um tanto vazias quando comparadas com as que dividimos ao vivo e em cores. As aventuras internéticas (redes sociais, jogos) podem, sem dúvida, reforçar os laços de amizade que existem a partir de interações mais concretas, mas será que conseguem criá-los?

A amizade precisa de três critérios para se concretizar: experiência compartilhada, lealdade e objetivos comuns, ou conexão mental

Os adolescentes que jogam Call of Duty em grupos, por exemplo, compartilham experiências emocionais coletivas, como quando o esquadrão do meu filho tem de se organizar para capturar a munição do inimigo. Essas aventuras compartilhadas estimulam o prazer (dopamina) no organismo, ou seja, dá a impressão de que deveria haver algum laço ali. Entretanto, os “amigos” on-line não são mais que instrumentos de dosagem dopamínica, sendo facilmente substituídos sem muito alarde, como no caso do tal Scuzball, que ninguém sabe nem quem é, onde mora, se é homem ou mulher, se é gente ou só um bot.

O tipo de presença necessária para uma grande amizade não parece ser cultivada em muitas interações on-line; ela exige “estar com” e “fazer para” (sacrifício). Nas redes sociais, ou mesmo nos jogos interativos, essas atitudes parecem triviais porque não há muita coisa em jogo.

Mais importante que isso, o “espaço compartilhado” da vida digital é incorpóreo. Não podemos tocar uns nos outros, cheirar, notar expressões faciais ou estados de espírito. A verdadeira ligação entre duas pessoas é mais biológica que psicológica e exige contato físico. O envolvimento emocional da amizade verdadeira produz oxitocina e endorfinas no cérebro e no corpo dos amigos, unindo-os de uma maneira mais profunda do que em outras relações.

É possível que a realidade virtual e a tecnologia de realidade aumentada em breve possam gerar experiências fraternais como essas. Há grandes chances de que o compartilhamento de aventuras com outra pessoa, ainda que na realidade virtual, desencadeie uma ligação baseada na oxitocina. Por enquanto, porém, as relações nas redes sociais parecem privilegiar os gatilhos mais superficiais do sistema de recompensa do cérebro (fluxos de dopamina na área tegmental ventral).

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Talvez a característica mais marcante da amizade profunda seja o “fazer por”, como quando meu amigo me cobre em uma situação de combate ou, de modo mais prosaico, me traz sopa ou remédio quando estou doente. Somente os laços fortes, criados por meio de atividades recíprocas personificadas, têm o poder de motivar os sacrifícios verdadeiros. Mas não se sabe por que os “amigos” on-line se dariam ao trabalho de se dedicar à amizade. Quando a chapa ferver, meu amigo virtual descarnado não vai se voltar aos outros iguais a ele, com quem não corre o risco de ter atritos, precisam de pouco e exigem menos ainda? Quando perguntei aos meus alunos se tinham alguém que lhes levaria sopa quando estivessem doentes, eles riram da minha pergunta pré-histórica e disse que pediriam uma porção pelo GrubHub ou UberEats.

No fim das contas, há três possibilidades no que se refere à amizade e à vida digital: a segunda pode replicar todos os critérios essenciais da primeira, e aí não há com que se preocupar, mas duvido muito disso. Pode ser também que ela preencha e absorva todo o tempo de vida em que estamos despertos, de modo que as pessoas não se envolvam mais em casos padrão de facilitação de amizade (como esportes, artes coletivas, infância sem restrições etc.). Dessa maneira, a vida digital contribui para certos tipos de isolamento social. Por último, ela também produz amizades falsas (já que são relativamente não corpóreas). Em outras palavras, os jovens não sabem que não têm amigos de verdade.

Talvez nossos temores em relação à tecnologia sejam exagerados; meu filho me lembra de que a garotada média norte-americana desfruta de um tempo considerável de engajamento social todos os dias.

“Ficamos juntos!”, ele conta quando pergunto o que faz com os amigos. “Na hora do almoço e no intervalo a gente tira umas partidas de game no telefone, falamos das meninas e dos professores, ajudamos quem precisa com a lição de casa, pegamos no pé uns dos outros, rimos dos memes, pregamos algumas peças.”

Quando pergunto o que é um bom amigo, ele responde: “Amigo tem de ter interesses comuns, e acho legal uma pessoa engraçada. Também é bom se for gentil e leal… mas também tem de tirar sarro com a cara dos outros e saber aceitar!”

Talvez nossos temores em relação à tecnologia sejam exagerados

Esses critérios modestos ficam bem próximos dos meus. Nas minhas amizades eu me disponho a aceitar que todo mundo tem lá seus defeitos, por isso acho que devo estender esse mesmo realismo à geração do meu filho.

Na verdade, quanto mais aprendo sobre a vida on-line, mais começo a duvidar do meu entendimento sobre amizade. E não seria a primeira vez que teorizo algo sem chegar a lugar algum.

Fiquei surpreso e emocionado, por exemplo, ao ler uma reportagem da BBC sobre um jovem chamado Mats Steen, cujo corpo sofria de graves deficiências devido à distrofia muscular de Duchenne. Antes de sua morte, aos 25 anos, ele conquistou muitos amigos dedicados no espaço virtual de World of Warcraft, como um avatar musculoso.

Em seu blog, ele escreveu: “Ali, minha deficiência não faz diferença, minhas limitações não existem e posso ser quem eu quiser. Ali me sinto normal.” Alguns de seus amigos on-line mais próximos nem sabiam de sua doença, e se aproximaram porque as mensagens trocadas noite após noite iam além das noções de gênero, raça, religião, lugar, idade e mobilidade, atendo-se às misteriosas conexões da alma, por meio dos detalhes compartilhados da luta diária. Alguns deles chegaram a ir à Holanda para seu enterro e oferecer condolências à família – o que, como prova de amizade, é bem mais impressionante do que levar sopa para alguém.

Suponho que nossos temores em relação à vida on-line sejam inevitáveis, afinal nunca vimos até agora nada parecido no mundo social. Talvez, quem sabe, os jovens se deem bem. Até o tal de Scuzzball.

Stephen Asma é professor de Filosofia do Columbia College Chicago e membro do programa Teologias Públicas de Tecnologia e Presença do Instituto de Estudos Budistas. É também autor de “The Emotional Mind: The Affective Roots of Culture and Cognition”.
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