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Imagem ilustrativa.| Foto: EFE/ Antonio Lacerda

Acordei hoje com os versos de Aquarela do Brasil na pontada língua, “Abre as cortinas do passado, tira a Mãe Preta do cerrado, bota o Rei Congo no Congado … “Ai, esse Brasil lindo e trigueiro …”e assim passei a manhã escutando essa extasiante canção de Ari Barroso em suas inúmeras versões cantadas por Aracy Cortes, Francisco Alves, Mário Reis, Aloysio de Oliveira, Carmen Miranda, até os mais modernos, Gal Costa, em solo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e João Gilberto, em trio baiano, Frank Sinatra e, não menos, o exuberante Tim Maia.

Já nos anos 90, desde que Aquarela do Brasil fora rotulada, com sarcasmo político pré-identitarista, de “samba de exaltação”, só cantores muito seguros de sua voz e reputação ousavam cantá-la sem pavor de serem rotulados de direitistas, autoritários, racistas e fascistas. Imagine agora! Nem Chitãozinho e Xororó ousariam!

Enquanto escutava o trio baiano, devaneava sobre o mineiro de Ubá, então uma cidadezinha deslocada do centro político e cultural de Minas Gerais. Filho órfão de um deputado estadual, com parentela nos altos escalões do governo anterior à Revolução de Trinta, Barroso se desviara de sua incumbência jurídica para se dedicar à musicalidade nascida, não nos salões, mas nos arraiais livres formados por gente mestiçada de negros, índios e brancos e nos bairros pobres, fermentada pelo rádio, a ponto de compor as mais belas e intricadas canções, inclusive as mais buliçosas sobre a Bahia.

Nesses tempos desmantelados em que vivemos, se Camões ressurgisse por uma nuvem quântica levaria uma baita cusparada na cara ou uma estocada no seu olho bom pelo mal de cantar a valentia e a proeza portuguesas.

Ele foi capaz de delinear tantos aspectos da cultura brasileira, principalmente sobre o caráter mestiço, a alegria e a glória de ser brasileiro, como se o Brasil estivesse experimentando um renascimento cultural, uma autoconsciência de si, que talvez augurasse tempos novos. Não por acaso, o escritor austríaco Stefan Zweig, aqui morando, vislumbrava, em rejuvenescimento poético, o Brasil como sendo “o país do futuro”, nem tanto por suas riquezas verde-amarelas, mas pela amorosidade  interracial e interétnica que lhe aflorava a cada cafezinho, a cada pinga que compartilhava nos botecos do morro da Providência, em 1940. Vindo de uma Europa conflagrada, antijudaica, anti-humanista, racista e prepotente, o Brasil já lhe afigurava o paraíso na Terra.

Da minha parte, 80 e tantos anos depois, eu ouvia esses versos enlevado pela beleza musical e em encantamento meio encabulado pelas surpresas literárias — uma lua que emite uma “merencória luz”; pelos aspectos, digamos, antropológicos, como nos versos – “meu mulato inzoneiro”, “morena sestrosa de olhar indiscreto” e “Brasil lindo e trigueiro” —, bem como este verso auto identitário, precursor de uma botânica filosófica, se não teológica — “este coqueiro que dá coco”, como que evocando Javé no alto do monte Sinai estrondando para Moisés, “Eu Sou o que Sou!”. Deslumbrem-se só com a modulação vocal e bocal de Gal cantarolando “terra boa e gostosa”. A canção é tão inebriante que um literato português, talvez menos chato do que um literato brasileiro da atualidade, podia até perdoar as incontáveis repetições das palavras “Brasil, Brasil pra mim, meu Brasil brasileiro”.

É certo que esses versos evocam Gilberto Freyre, hoje grasnado como um capcioso lusófilo; Stefan Zweig, um ingênuo deslumbrado em busca da salvação; Darcy Ribeiro, um outro mineiro fora de si; Vilém Flusser, outro judeu descabido de encantamento, e outros tantos mais, visigodos, cristãos novos, pretos, mestiços e amarelos, hoje quase afogados no mar de desentendimentos estilhaçados pelas taras woke e pós-modernistas americanas e europeias.

Na hora do almoço, tomando um açaí no indefectível Tacacá do Norte, na rua Barão do Flamengo, Rio de Janeiro, um amigo me manda uma entrevista de certo escritor português que declarava amar o Brasil e no mesmo diapasão vituperava sua insuscetível conclusão, em forma dubiamente apologética, de que a mestiçagem no Brasil teria sido fruto do estupro, logicamente de um seu fogoso antepassado com alguma negra ou índia no Brasil.

A indigente asseveração de que Portugal, em seus áureos tempos de glória camoniana, seria o único macho reprodutor na formação do Brasil, lhe faz escapar do raciocínio, como igualmente não passa pela cabeça dos desconstruídos ideólogos do wokismo norte-americano em forma de identitarismo brasileiro, que negros e índios, negras e índias também exerciam o ato libidinoso de reprodução biológica com igual intensidade e muito maior liberdade entre si, e que eles e elas, mais do que os poucos lusos aqui degradados, é que constituíram a base da nascente e mestiça população brasileira, não somente nas cidades, engenhos, vilas e missões, mas principalmente nos entremeios desses aglomerados, nos arraiais, vilas e povoados livres que se formavam por todo o território conhecido e pelas novas terras a povoar.

Não se pode esperar que escritores estrangeiros cheguem ao Brasil e já saibam que a historiografia e a antropografia nacionais estão em atividade criadora e rebelde diante das narrativas estereotipadas que dominam o panorama jornalístico e acadêmico nacional. Outrossim, não se espera de um gentil lusitano se gabar de seu estado de ser atual, mas soa inconsequente ouvir choramingues inconvincentes sobre o Brasil ter que purgar o mal do estupro coletivo que o teria constituído.

Nesses tempos desmantelados em que vivemos, se Camões ressurgisse por uma nuvem quântica – quem sabe isso não existe! – levaria uma baita cusparada na cara ou uma estocada no seu olho bom, pelo mal de cantar a valentia e a proeza portuguesas; se fosse Vieira a declamar o surgimento do Quinto Império – que não é outro senão o Brasil multitudinário –, seria levado ao garrote e à fogueira por esses novos cães do cramunhão; e se o inefável luso austro-africano, com sua desbotada autocomiseração, renascesse em um dos seus avatares, seria escorraçado aos gritos de fascista da última tabacaria que resta em Lisboa.

“Ai, esse coqueiro que dá coco, onde eu amarro a minha rede”. Ah, a licença poética: qual o mineiro que amarraria sua rede num coqueiro?

Mercio P. Gomes é antropólogo e autor do livro O Brasil Inevitável.

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