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A cachorrinha desgrenhada, de origem indeterminada – é mistura de beagle ou de terrier, dependendo do veterinário –, chega ao fim do acesso à garagem de casa e se senta. Uma cutucada de leve na guia faz com que se abaixe completamente, a cara apoiada nas patinhas dianteiras. Um petisco oferecido em troca da continuação da “caminhada” não melhora muito a coisa. No calor infernal de agosto, ela se vira de lado, esticando as quatro patas e pendendo a cabeça no asfalto abrasador. Seu recado é bem claro: “Esse é o limite dos cães resgatados e realmente não tenho a mínima intenção de sair deste quintal, muito obrigada.”

E eu nem posso culpá-la; afinal, ela não só é nova aqui como talvez nunca tenha tido um lar antes. Quem vai abandonar a própria casa de livre e espontânea vontade, mesmo brevemente, se todas as mordomias forem novidade? E se tamanha dádiva, pelo menos no que lhe diz respeito, for apenas temporária? Ela chegou ao abrigo como sendo de rua, vai saber por onde andou ou o que passou... mas, sem dúvida, está traumatizada.

Ela tem medo de tudo: de outros cães, obviamente, e de estranhos, mas também de batentes de portas, do barulho de pés calçados, da própria tigela de comida. Até barulhos desconhecidos a paralisam, deixando-a em alerta máximo – e todo ruído lhe é desconhecido. Não late; não o fez nenhuma vez, mas gane ao toque inesperado mais leve. De fato, é mais que um ganido; fica entre um gemido e um grito aterrador. Até eu comecei a ficar traumatizada. Minha cachorra berra e meu coração dispara: o que será que fiz de errado dessa vez?

O tempo e o amor vão curar qualquer trauma que tenha resultado em tantos medos

Apesar dos inúmeros medos, essa cachorrinha traumatizada é incrivelmente gentil – “tem jeito de vó”, segundo seu perfil no site do abrigo. Tenta entender o que queremos dela e enterra o focinho em nossa mão quando não consegue. Nós lhe demos o nome de Millie, o mesmo da nossa falecida vizinha que viveu uma vida de gentileza discreta.

Na hora das refeições, eu me sento ao lado da tigela e ofereço um punhado de ração da minha mão, um grãozinho por vez. Ela se aproxima devagar, rastejando sobre a barriga, pega o punhado de comida e vai comer em outro cômodo. Às vezes, leva meia hora para esvaziar a tigela, mas finalmente chega lá. Com o tempo, aprendeu a comer sozinha, do próprio pote, como o pet mimado que se tornou, talvez inexplicavelmente para si mesma. É esse momento que me dá esperança. Acho que ela realmente só precisa de tempo. O tempo e o amor vão curar qualquer trauma que tenha resultado em tantos medos.

Entretanto, passam os meses e as dificuldades persistem. Já adotara cães adultos antes; sei que há um período de ajuste, em que uma paciência infinita e a tranquilização constante são absolutamente necessárias – mas nunca vi nada parecido com essa cachorrinha quieta, as sobrancelhas desalinhadas de Groucho Marx, esse animal de pelagem revolta apavorada com tudo e todos e um eterno ar aflito.

Da mesma autora: O que significa ser amado por um cão (publicado em 24 de junho de 2018)

Leia também: O problema do cachorro francês do homem cego (artigo de Adam Linn, publicado em 21 de outubro de 2018)

Millie quer desesperadamente confiar na vida nova, mas não consegue. Para ela, o mundo é um lugar perigoso. Meses depois de fazer parte da nossa família, ainda reluta na hora de fazer as necessidades, aparentemente com medo de se mostrar tão vulnerável. Nos passeios, ela puxa a guia, querendo alcançar os vizinhos que saem para andar na mesma hora – só que, quando chega perto deles, começa a tremer violentamente. Na verdade, a tremura é o mais simples; duro mesmo é quando se deixa cair, vira de lado e se molha toda. Essa cachorra é a personificação em quatro patas do clássico conflito de aproximação-afastamento.

Busco ajuda em The Education of Will: A Mutual Memoir of a Woman and Her Dog, livro soberbo de Patricia McConnell sobre superação, tanto canina quanto humana. E me conforta saber que essa especialista em comportamento animal tão prestigiada precisou de vários meses de treinamento intenso para ajudar o próprio cão, traumatizado, a superar seus medos. Seguindo seu conselho, estou aprendendo a reconhecer o que funciona como gatilho para Millie e intervir antes que entre em pânico.

Agora ela já fica animada, antecipando as caminhadas, e, na maioria das vezes, encontra outros cães na rua sem querer fugir. Em vez de esticar a guia ao máximo tão rápido que acaba rodopiando em pleno ar e se estabaca no chão, continua andando, mas se aproxima mais de mim e fica olhando para cima, como para se certificar (e de olho também no petisco de frango, uma estratégia prática que aprendi com o livro de McConnell).

Estou aprendendo que talvez só o amor não seja suficiente para recuperar uma criatura desestruturada

Lenta, muito lentamente, estou aprendendo que talvez só o amor não seja suficiente para recuperar uma criatura desestruturada, mas que, além dele, investir tempo, treinamento e petiscos de alta qualidade é um bom começo. Pode ser que leve anos até Millie conseguir confiar em mim o suficiente para dormir ao meu lado e deixar de uivar de terror, saindo desesperada, correndo, quando alguém sem querer tropeçar nela – mas sou paciente. Tenho tempo de sobra para nós duas.

Afinal, Millie não é a única a se sentir triste, preocupada e com medo; em meados do ano passado, em questão de pouco mais de um mês, perdi meus dois cachorros tão queridos, o misturinha de hound-pastor-retriever que nos ajudou a criar nossos filhos e o salsicha velhinho que foi a grande alegria nos últimos anos de vida da minha mãe. Ambos idosos, já estavam doentes, mas quando morreram fui inundada por uma dor sem fim.

O fim da meia-idade é invariavelmente um período de perdas. Para quem tem sorte, elas são comuns e completamente previsíveis: os pais que morrem pela idade avançada, os filhos que crescem e saem de casa, animais que vivem um tempão, mas não podem viver para sempre. Só que o fato de serem previstas não as torna menos dolorosas.

Leia também: Por que a prosperidade cresceu, mas a felicidade, não (artigo de Jonathan Rauch, publicado em 26 de agosto de 2018)

Leia também: Substituindo bebês por cães (artigo de Marta Luciane Fischer, publicado em 8 de setembro de 2015)

E a vida no clima político atual já é um trauma em si. O planeta em convulsão, com geleiras derretendo, incêndios incontroláveis, furacões cataclísmicos, e nossos conterrâneos reagem colocando o poder nas mãos de gente que não está nem aí. De repente, o mundo inteiro parece ser povoado por refugiados, e muitos de nossos conterrâneos reagem gritando: “Erga o muro!” Como lidar com toda essa mortandade, toda essa tristeza e sofrimento, essa raiva tão perigosa?

Millie todo dia me faz lembrar que a vida não é feita só de descartes, mas que pode também conter possibilidades. Sempre haverá uma oportunidade de fazer amigos, sementes a plantar, alguma forma de aliviar o sofrimento. Ela me lembra que esta não é hora de desesperar. A pequena, que foi resgatada, também está me ajudando a me resgatar.

Na semana passada, meu marido e eu fomos acordados por um som estranho em plena madrugada. Sentamos na cama, confusos. Então o ouvimos de novo e nos levantamos para ver de onde vinha.

Era Millie, de pé na porta da cozinha, latindo. Um gambá tinha subido no nosso deque, atraído pelo alpiste espalhado ali. A noite estava clara, a lua, cheia, e podíamos ver bem o “sorriso” dentuço do gambá tão bem quanto o que nos tinha acordado. Ela estava a nossos pés, olhando para cima e balançando o rabo.

Margaret Renkl contribui para a coluna de opinião, escrevendo sobre a flora, a fauna, a política e a cultura do Sul dos EUA. É autora do inédito “Late Migrations: A Natural History of Love and Loss”.
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