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As lições de Antonin Scalia
| Foto: Fabio Abreu

Antonin Scalia foi o primeiro “justice” (o termo usado para os magistrados da Suprema Corte americana) de origem italiana, apontado por Ronald Reagan em 1986. Era um conservador originalista, ou seja, levava muito a sério a intenção dos “pais fundadores” ao legarem a Constituição como espinha dorsal da lei no país que criaram, em vez de considerar o documento um “organismo vivo” a ser moldado pelo modismo do momento, ou pela “voz das ruas”.

Católico, amante de ópera, dono de refinado bom humor e com uma postura de cavalheiro, Scalia foi casado por meio século com Maureen, com quem teve nove filhos. Scalia morreu aos 79 anos de idade, em 2016, num rancho no Texas, onde estava com outros membros de um grupo de caça. Um de seus filhos, Christopher, reuniu inúmeros discursos do pai, com a ajuda de um assessor, no livro Scalia Speaks, que englobam reflexões não só sobre o direito legal, mas sobre a fé e uma vida bem vivida.

O prefácio foi escrito por Ruth Ginsburg, também da Suprema Corte e de inclinação “progressista”. As divergências ideológicas não impediram a amizade e o respeito mútuo entre ambos, algo que já serve como primeira lição para os tempos atuais, em que qualquer desacordo político já é pretexto para se romper relacionamentos. Boas pessoas podem chegar a conclusões diferentes, e as instituições podem se beneficiar de tal pluralidade.

Além disso, o próprio Scalia gostava de desafiar crenças estabelecidas, não por ser do contra, mas por entender que era fundamental inspirar nos outros a dúvida, o desejo de questionar suas premissas e de buscar a verdade. O processo de procurar a resposta, de pesquisar, é aquele que estimula a mente. Novas analogias ocorrem, novas avenidas se abrem, e os insights surgem por meio desse processo.

Os americanos demonstraram ao longo do tempo um apreço maior pela defesa das liberdades individuais, pela liberdade de expressão e religiosa

De origem italiana, Scalia também foi um grande patriota, e identificava os principais valores que representavam a América. Tinha humildade para reconhecer que os melhores de hoje, os mais bem-sucedidos, subiram em ombros de gigantes do passado. Ele entendia como é difícil criar uma grande sociedade, enquanto é muito fácil, por meio de intrigas bobas internas ou do fracasso de confrontar ameaças externas, perdê-la. A América merece ser preservada.

E quais seriam esses valores que fazem dela uma grande nação, e que os italianos teriam colaborado para alimentar? Em primeiro lugar, a capacidade de trabalhar duro; em segundo lugar, o amor pela família; em terceiro lugar, o amor pela igreja, ou a fé religiosa; e, por fim, como resultado dos demais, um amor pelos prazeres físicos simples da existência humana, como boa comida, música e, claro, vinho.

Com isso em mente, Scalia se sentia orgulhoso da herança cultural italiana, e mesmo assim se sentia 100% americano. Imigrantes jamais deveriam ser ingratos com a América. Se trouxeram contribuições, também receberam muita coisa em troca. A começar pela tolerância para com essas diferenças, algo um tanto único nos Estados Unidos, um “caldeirão” cultural. E o que faz alguém americano não é o sangue, o local de nascimento ou o nome, mas sim a crença nos princípios da liberdade e da igualdade de todos perante as leis.

Um dos pontos mais fortes da nação, para Scalia, é justamente o fato de pessoas com credos distintos, etnias diferentes, origens diversas, unirem-se em prol de ideais comuns e aprenderem não só a tolerar, mas a respeitar o outro. Mas nada disso pode ser tomado como garantido. Scalia lembrava que o progresso moral não segue o material, e que a Alemanha que produziu o nazismo foi a mesma que se destacava nas ciências, na filosofia, na música ou na educação pública. O fato de que o Holocausto ocorreu nesta nação deve servir sempre como alerta aos que confundem avanço científico ou material com valores morais ou espirituais.

Por mais que a América seja fruto do legado da Europa, Scalia também gostava de destacar as diferenças entre ambos, apontando valores que os americanos tinham e estavam ausentes no continente europeu. A Constituição escrita pelos fundadores tinha como meta justamente impedir muitos dos equívocos que viram no velho continente. A começar por um ceticismo bem maior em relação ao governo, buscando criar mecanismos de pesos e contrapesos para mitigar o potencial estrago causado pelo Estado.

Os meios para se perseguir os fins é que variam bastante, e o diabo está sempre nos detalhes. Os americanos demonstraram ao longo do tempo um apreço maior pela defesa das liberdades individuais, pela liberdade de expressão e religiosa, garantida na Primeira Emenda, pelo direito de ter armas, garantido na Segunda Emenda e que visava à proteção do povo contra o risco de tirania do governo.

O aspecto religioso também difere; enquanto a Europa se torna cada vez mais secular, os americanos seguem conscientes daquilo que seus “pais fundadores” sabiam: que um povo livre precisa de um arcabouço moral, e que este depende da religião. John Adams, Benjamin Rush e George Washington enfatizaram inúmeras vezes a importância desse pilar para a sobrevivência da república.

Por fim, a importância vital do “rule of law”, um Estado de Direito em que todos devem responder às mesmas regras. Scalia citava em seus discursos um trecho de O homem que não vendeu a sua alma, filme de Robert Bolt sobre Thomas More, em que o santo justifica o benefício legal até para o diabo. A passagem é memorável, pois More faz uma defesa incrível do império das leis dos homens, lembrando que não é Deus para julgar acima delas, e que atalhos ilegais para punir quem se sabe ser uma pessoa ruim colocam em risco o próprio arcabouço que protege os inocentes: “Oh? E quando a última lei caísse, e o Diabo se virasse para você – onde você se esconderia, Roper, as leis estando todas abaixo? Este país está enraizado com leis de costa a costa – as leis do homem, não as de Deus – e, se você derrubá-las – e você é o homem certo para isso –, você realmente acha que poderia ficar de pé contra os ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da lei, para minha própria segurança”.

Que inveja de um povo que teve alguém como Scalia como ministro da Suprema Corte! Compará-lo aos pigmeus morais que ocupam nosso STF é compreender o abismo institucional que separa os Estados Unidos do Brasil...

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

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