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 | Beto Barata/PR
| Foto: Beto Barata/PR

Aproveitando a desaceleração na agenda no fim do mandato, estive por alguns dias na China, a convite e patrocínio total da Guangdong University of Technology, para participar do seminário “Inovação nos Brics e a comunidade global com futuro compartilhado”. Aproveitei para adiantar meu estudo “Por que a China deu certo”. A visão da China é motivo de admiração – aeroportos, estradas, trens, prédios e, ainda mais, o desempenho econômico. Trinta anos atrás, o PIB da China era de US$ 312 bilhões e o do Brasil, US$ 330 bilhões. Hoje o PIB chinês é de US$ 12,24 trilhões e do Brasil, de US$ 2 trilhões.

Em poucos anos, os chineses conseguiram a inclusão de 100 milhões de pessoas na classe média, com renda per capita equivalente à média da Europa; 400 milhões atingiram a renda da classe média brasileira. As cidades estão ligadas por uma rede com 28 mil quilômetros de trens-bala, enquanto toda a Europa tem 9,3 mil km. O nível de desenvolvimento científico e tecnológico permite ter uma nave espacial circulando ao redor da Lua. Ao lado desses sintomas de progresso, surpreende como as cidades são metrópoles modernas, limpas, com paz, calçamentos impecáveis, sem pobreza visível.

A surpresa é maior quando entramos nas universidades e temos a chance de estudar as redefinições que o pensamento chinês está promovendo sobre ideias dos tempos atuais. Os políticos, os intelectuais e o povo estão redefinindo conceitos que não se adaptam às exigências do bom funcionamento social nos tempos da robótica, da globalização e dos limites ecológicos ao crescimento da produção material. O próprio conceito de democracia está sendo redefinido em um país onde o único partido determina a coesão no presente e o rumo do país para o futuro.

Devido à política de crescimento industrial, Pequim e outras cidades chinesas estão entre as mais poluídas do mundo

Devido à política de crescimento industrial, Pequim e outras cidades chinesas estão entre as mais poluídas do mundo. Diante disso, o governo chinês tomou medidas para controlar a poluição: táxis são obrigados a usar energia elétrica e os motoristas pagam fortunas para emplacar carros novos se movidos a combustível fóssil. Intelectuais e dirigentes chineses dizem que a população certamente não votaria a favor dessas decisões.

As manifestações recentes na França, contra o aumento no preço do combustível fóssil para reduzir o consumo e a poluição, são exemplo da contradição entre a democracia dos eleitores de hoje e a democracia comprometida com o futuro. Os interesses imediatos do eleitor e os interesses de longo prazo do povo se chocam, impedindo medidas que limitem o consumo. Na democracia chinesa, os membros do partido discutiram por anos esse assunto e decidiram reduzir a taxa de crescimento em nome do equilíbrio ecológico.

É certamente um conceito de democracia diferente do ocidental. Além disso, segundo eles, a primazia absoluta do voto individual universal impede a adoção de filtros que levem em conta o mérito de cada candidato. Disseram-me que lá a democracia não se baseia apenas no voto, mas também no mérito demonstrado por cada candidato a cargo público ao longo da carreira.

Leia também: O exemplo chinês (editorial de 12 de maio de 2015)

Leia também: O que o Brasil pode aprender com a China sobre inovação (artigo de Ronaldo Mota, publicado em 25 de novembro de 2018)

Quando perguntei sobre a liberdade pessoal de ir e vir – na China, para emigrar de uma província a outra, é preciso autorização do governo central –, perguntaram a mim se no Rio de Janeiro e outras grandes cidades do Brasil um cidadão pode caminhar livremente nas ruas, ou se a violência impede a livre circulação. Explicaram também que lá existe planejamento de instalações educacionais e hospitalares e a migração livre desarticularia o equilíbrio entre a oferta e a demanda dos serviços.

O conceito de igualdade, que até o período revolucionário era absoluto – todos com mesma renda e consumo –, passou a ser relativo. O governo chinês se propõe a erradicar a pobreza, mas tolera a desigualdade de renda e consumo que decorre do mérito do cidadão, graças ao talento, à persistência, à criatividade e ao empreendedorismo.

É cedo para saber se as redefinições em marcha na China vão levar o Ocidente a rever seus conceitos ou se o povo chinês vai preferir adotar conceitos ocidentais. Mas não se pode negar que a revolução tecnológica em marcha, simultânea à globalização e aos limites ecológicos, exige revisões de nossos conceitos. E não se pode negar que os chineses estão tentando inventar a modernidade, na prática do desenvolvimento e na teoria de conceitos.

Cristovam Buarque é senador pelo PPS-DF e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).
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