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CPI da Covid
Vista do Congresso Nacional a partir do Palácio do Planalto.| Foto: Pedro França/Agência Senado

A cada dois anos o Congresso Nacional se mobiliza no sentido de alterar as regras eleitorais. Geralmente, a grande mudança surge como tubo de ensaio para os pleitos municipais, que são preparatórios às escolhas nacionais e estaduais. Neste ano, o cenário se alterou profundamente por alguns motivos, preponderantemente levados em conta pelo comportamento do presidente da República, em face do cenário da pandemia, mas também pela incidência dos reflexos da Lei da Ficha Limpa em algumas supostas candidaturas.

Como as alterações das regras eleitorais devem ocorrer até pelo menos um ano antes da data marcada para a escolha popular – por mandamento da Constituição Federal e para que o cenário político se prepare com antecedência –, estamos em vias de atingir o prazo fatal: o início de outubro deste ano. Entretanto, o alerta preocupante é sobre como este processo está sendo conduzido e quais os pontos que abrangem as tendências dessas alterações.

Antes de tudo é recomendável separar as duas questões. Reforma eleitoral é uma coisa, e reforma política é outra, totalmente diferente. A primeira diz respeito exclusivamente às regras para o processo de alistamento dos eleitores, registro de candidaturas, convenções partidárias, arrecadação e aplicação das verbas eleitorais, campanhas, apuração, diplomação, prestação de contas e o andamento das ações eleitorais de um modo geral. Já a segunda – a reforma política –, por sua vez, trata do sistema governamental estruturante dentro dos poderes constituídos na relação entre Executivo e Legislativo. Portanto, a reforma eleitoral é instrumental, ou seja, de como se dará o funcionamento do processo de escolha, sendo ela a conformação da base e da armação do relacionamento das ações de gestão da questão pública.

No início deste ano descortinaram-se apenas os desejos de uma reforma eleitoral, seja porque a pretensão era dar mais dinamismo ao processo, facilitando questões como o registro de candidaturas, mas também transparecendo o desejo da unificação da legislação, agregando a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral a um desejável sistema singular legislativo, visto que hoje temos um Código Eleitoral aprovado nos anos de fogo da ditadura militar, uma outra norma denominada Lei das Eleições, mais a Lei dos Partidos Políticos e a Lei das Inelegibilidades, que recebeu em 2010 o aditamento da Lei da Ficha Limpa.

Contudo, a toque de caixa, o Congresso Nacional abre as ventanas para uma mudança também no sistema político, com uma possível adoção distinta de sistema de governo, seja parlamentarista ou “semipresidencialista”, no intuito de enfraquecimento das ações do Poder Executivo, propiciando uma atuação executiva mais parlamentar, com a figura do primeiro-ministro. Não sou contra uma reforma política, nem mesmo contrário ao sistema de governo parlamentar – aliás, sou favorável à adoção deste método de relacionamento entre os poderes da República. Todavia, discordo visceralmente de como se conduz este processo, até porque já tivemos um plebiscito a respeito do tema em 1993, no qual saiu vencedor o sistema presidencialista, carecendo de uma maior legitimidade popular para a virada da condução do país neste sentido sem um esclarecimento e legitimação da população a alterar as regras do jogo, em especial quando há possibilidade de reeleição do mandatário que exerce o poder. Situação distinta seria numa outra ocasião, na qual o direito subjetivo a reeleição já não fosse mais presente (caso de um chefe do Poder Executivo no seu segundo mandato) e o elemento humano do Estado (o povo) pudesse discutir a questão amplamente, seja pelo método democrático direto (novo plebiscito) ou mesmo representativo, com grande reverberação populacional reflexa no Congresso Nacional.

Mercê das consignações já realizadas, evidente que o país necessita de uma maturidade política para o ingresso no sistema parlamentarista, seja na sua categoria plena ou mesmo parcial, visto que os destemperos políticos sazonais que caracterizam nosso padrão de conduta política poderiam afetar a estabilidade desejável para a recuperação econômica e de credibilidade que tem sido abalada pelo desenfrear de comportamento dos diversos setores sociais.

Assim, a discussão de uma reforma política entre quatro paredes no seio de gabinetes fracionados pelo Congresso Nacional carece de toda pertinência temática e oportunidade temporal ao complexo parlamentarismo ou sua vertente semipresidencialista ao qual, quiçá, em momento mais oportuno e com toda a maturidade exigível, possamos um dia chegar – é meu desejo.

E tem mais. Não há sentido discutir um tema deveras intrincado como a reforma política em poucos meses, no silêncio sepulcral que move o desejo de uma mudança que muitos nem mesmo sabem como se daria na prática. Certamente, se aprovado for, teremos o mesmo destino de 1962, em que se implantou o parlamentarismo sem conhecê-lo, simplesmente para enfraquecer o governo João Goulart. Precisamos ser responsáveis pelas nossas escolhas, ainda que inconsequentes, movidas por desejos reflexos e impensados, salvando o país do desequilíbrio institucional, conforme as regras basilares da Constituição Federal que sustenta a democracia ainda jovem do Brasil, em profundo aprendizado da tolerância.

Noutra banda, agora vem a reforma eleitoral, alinhando-se na unificação dos sistemas legislativos, pretendendo criar um Código Eleitoral a absorver todas as demais leis eleitorais, o que não tem nada de errado. Isso irá simplificar o manuseio. Que a unificação seja bem-vinda, mas não com aconchegos de suprimir cláusulas e conquistas da Lei da Ficha Limpa, que procurou moralizar o processo de seleção de candidatos que não se acomodaram na legalidade.

A reforma eleitoral, em sua desvirtuação, excetuando os bons pontos da unificação do sistema, pretende diminuir os prazos de inelegibilidade e facilitar o ingresso de candidatos que macularam os cofres públicos, enfraquecendo todo o sistema longamente conseguido pela lei de iniciativa popular. Isso irá de encontro ao desejo da população; silenciosamente, tem se alterado redação por redação, parágrafo por parágrafo, para que nas entrelinhas muitos se salvem e possam ficar livres do anseio cândido da sociedade em ser bem representada, por pessoas honestas, límpidas e desprovidas do desejo do enriquecimento inconsequente à custa do empobrecimento da população e do esfacelamento dos empresários pagadores de uma carga inigualável de tributos, únicos no mundo, e em absoluta cascata.

A reforma eleitoral ainda traz o “distritão” e suas vertentes, que em alguns pontos pode ser útil ao processo de representação, especialmente quando acompanhado do sistema misto, recendo candidaturas majoritárias e proporcionais parlamentares na mesma circunscrição, mas ainda está desacompanhado de qualquer sistema lógico e coerente de divisão territorial, que necessitaria de um amplo e dedicado estudo, a eliminar preferências ideológicas e interessadas em cada repositório desse nosso grande país. Circunstâncias que, por si só, desautorizam a discussão de tão importante assunto neste silêncio de debate legislativo, empobrecendo um tema que poderia render muitos frutos produtivos no longo prazo.

O sistema eleitoral não pode ser instável, com mudanças desprovidas do debate com a sociedade e deixando de lado os especialistas no tema. Há um experimento de interesses momentâneos. Existe em curso, evidentemente, uma reforma eleitoral boa e ruim, mas também uma política impertinente ao momento, todas ensurdecedoramente silenciosas. Claro está, outrossim, que a reforma pretendida mais interessa a determinados grupos, esquecendo-se daquela adequada ao país. Enquanto não olharmos mais além, prevalecerão os anseios pessoais ou coletivos sobre o verdadeiramente nacional.

Clever Vasconcelos, doutor em Direito, é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e professor de Direito Constitucional e Eleitoral do Ibmec/SP.  

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