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Nas últimas semanas, vários sites, revistas e jornais dos Estados Unidos têm sido palco de um debate universitário que, na verdade, vai muito além dos muros da academia. A história tem início em um artigo na The New Yorker, em dezembro do ano passado, no qual Jeannie Suk, professora de Direito em Harvard, descreve o que chama de um “efeito colateral perverso” do modo como a sociedade está lidando com certos temas. Alguns alunos solicitaram aos professores que as aulas acerca da legislação que versa sobre crimes sexuais fossem precedidas por um alerta de que o conteúdo é potencialmente desencadeador – em inglês, a expressão é precisamente trigger warnings – de reações, lembranças e sentimentos desagradáveis ou traumáticos, em especial para vítimas de abusos.

Dali em diante, vários professores e alunos vieram a público posicionar-se sobre o tema. Segundo algumas organizações discentes, os avisos deveriam constar nas ementas de cursos potencialmente ofensivos, o que inclui mitologia grega, literatura e mesmo história, com suas narrativas de farsas, sexo, intrigas e morte – ou seja, como a vida real. Uma vez notificados com antecedência, os alunos mais sensíveis poderiam inclusive pedir dispensa de tais matérias. Mas o “cuidado” não para aí. Algumas universidades divulgaram entre seus membros um manual com uma lista das assim chamadas “microagressões” a serem suprimidas a todo custo; entre elas, a Universidade da Califórnia tem em seu rol de frases eventualmente ofensivas casos como “só existe uma raça: a raça humana”, por poder suscitar a ideia de que brancos não reconhecem a existência de negros ou, ainda, dentro do grande tema intitulado no manual como “mito da meritocracia”, a declaração “acredito que a pessoa mais qualificada deva ganhar o emprego”, uma vez que ela poderia gerar no preterido o inexpugnável trauma de perceber que não é tão bom quanto acha que é.

O que inicialmente apontava para um fato passa a deformar a própria fatualidade

O assunto tem sido atacado por diversas perspectivas, sendo a das nefastas consequências emocionais e intelectuais para essa nova geração de “podres de mimados” (como bem descreve Theodore Dalrymple) a mais evidente. Mas eu gostaria de trilhar outro caminho.

O termo “microagressão” é um neologismo criado na década de 70 pelo psiquiatra Chester Pierce, de Harvard, para se referir justamente aos casos de agressões cotidianas mais ou menos veladas sofridas pelos negros nos EUA. Como todo bom conceito, ele capta, delimita e joga luz sobre um aspecto da realidade que por vezes passa desapercebido, sobretudo para aqueles que, como neste caso os agressores, não sofrem com seu contraponto empírico. Mas não é aí que reside o problema.

Absorvido por determinada matriz de pensamento, radicada sobretudo no pensador francês Michel Foucault, o que inicialmente apontava para um fato passa a deformar a própria fatualidade. A insana compreensão de que toda relação humana, sem exceção, é um caso da relação de poder que permeia inescapavelmente o cimento social – e que, logo, o exercício de tal poder, ainda que por microfrestas, é a natureza última das interações humanas – não apenas gera a hipersensibilidade literalmente infantil como também embota a sensibilidade madura e real. Como exemplo, Nancy Gamble e Lee Madigan afirmam, no livro Second rape (“Segundo estupro”), que as agressões e traumas posteriores ao abuso constituem violações “mais devastadoras que a primeira”. Ora, se por um lado não se pode negar a existência do amplamente documentado e grave estresse pós-traumático, por outro a própria comparação não faz o menor sentido real, filosófico ou jurídico.

Há de se lutar contra a realidade da violência, mas também contra as violações da realidade.

Gabriel Ferreira é doutor em Filosofia e professor na Unisinos.
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