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 | André Rodrigues/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: André Rodrigues/Arquivo Gazeta do Povo

No ano em que a Carta de Bauru completa 30 anos, avanços e retrocessos na organização dos serviços em saúde mental compõem uma balança difícil de equilibrar. O manifesto de trabalhadoras e trabalhadores em saúde mental que marcou a história da Luta Antimanicomial brasileira, em 1987, apontava os desafios para a oferta de tratamentos humanizados e com dignidade para pessoas com transtornos mentais e usuários abusivos de álcool e outras drogas, que ainda hoje são grandes. Desde a promulgação da Lei 10.216/2001, que instituiu a Reforma Psiquiátrica no Brasil, a assistência em saúde mental é permanentemente tensionada entre duas dimensões: a necessidade de refinar e aprimorar tecnologias críticas de cuidado e, ao mesmo tempo, investir esforços de gestão pública que aliem plenamente as políticas públicas de saúde às diretrizes da Reforma Psiquiátrica e do SUS.

A Luta Antimanicomial foi organizada em um contexto de enfrentamento a determinadas lógicas de cuidado centradas nos hospitais psiquiátricos, no isolamento como recurso de tratamento, na alta medicalização dos fenômenos da vida e no saber exclusivamente médico como definidor do projeto terapêutico. No entanto, 30 anos depois da Carta de Bauru, ainda observamos perspectivas pouco promissoras e com riscos de amplos retrocessos no âmbito das políticas públicas e do SUS e, consequentemente, no modo de se produzir assistência qualificada em saúde mental.

Como exemplo, na última reunião intergestores tripartite ocorrida em agosto deste ano, Quirino Cordeiro Júnior, coordenador nacional de Saúde Mental, teceu sérias críticas aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), utilizando questões como a da “produtividade” e da “fragilidade” da rede substitutiva ao manicômio para relatar suposta falta de efetividade neste modelo de equipamento de assistência.

Existem grandes desafios para a consolidação da Reforma Psiquiátrica no Brasil

É importante pontuar que, apesar do crescimento da rede assistencial em saúde mental, reconhecemos que existem grandes desafios para a consolidação da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Mas há de se levar em conta que, desde 2014, houve diminuição dos investimentos públicos na expansão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps, instituída pela Portaria 3.088/2011) por parte do governo federal. Houve também cortes nos repasses aos leitos psiquiátricos em hospitais gerais e parcerias com equipamentos privados (através do programa “Crack, é possível vencer”), o que descaracteriza toda a história da área de saúde mental.

Portanto, esse cenário não é suficiente para justificar medidas que agravem o desmonte de políticas públicas em saúde mental. Ao contrário, é fundamental a retomada de um processo criterioso de análise qualitativa e quantitativa destas políticas, baseadas no cuidado em liberdade e na perspectiva antimanicomial como modelo e que saneie as omissões e o subfinanciamento do SUS das gestões em saúde mental. Por si só este processo contribuirá para superar a compreensão de que a expansão de leitos em hospitais psiquiátricos representa avanços.

Leia também: A humanização com ampliação do acesso ao serviço (artigo de Márcia Huçulak, Flávia Quadros e Flávia Adachi, publicado em 9 de outubro de 2017)

Leia também: A desconstrução da saúde mental no SUS (artigo de Marcelo Kimati e Adriano Massuda, publicado em 29 de setembro de 2017)

Reconhecer as demandas da assistência em saúde e enfrentá-las são os primeiros passos para fortalecer os equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial e recuperar a noção de construção comunitária de assistência em saúde, sob o risco de contribuirmos para o retorno da lógica manicomial como resposta única à questão da saúde mental. Lógica esta que contraria todas as evidências científicas e recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que apontam que a reestruturação da atenção em saúde mental deve ser articulada à rede de serviços territoriais, inseridos na comunidade onde vivem os usuários, em detrimento dos hospitais e manicômios como espaços preferenciais de cuidado.

É essencial também compreender que a saúde mental como política social impacta ativamente na vida de usuários e trabalhadores; por isso, precisa ser discutida seriamente com a comunidade, sobretudo por meio dos fóruns de participação social. É somente com o envolvimento da sociedade em todas as etapas de proposição e monitoramento de políticas públicas que será possível enfrentar o processo generalizado de sucateamento das ações de desinstitucionalização e cuidado em liberdade, do retorno do “modelo ambulatorial” em saúde mental, a precarização dos equipamentos e das relações de trabalho. Por uma sociedade livre dos manicômios. Trancar não é tratar!

Cesar Fernandes, psicólogo, é assessor técnico em Políticas Públicas do Conselho Regional de Psicologia do Paraná.
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